Não é de hoje, dois procedimentos muito criticados na literatura são a repetição de fórmulas e o “bom mocismo”. Contrária a esses caminhos mais fáceis e, portanto, comuns, a literatura de César Aira não obedece a fórmulas, tampouco discute explicitamente a política por um viés pedagógico.
Talvez por isso quem lê César Aira há mais tempo tenha se impressionado com a vaga de reconhecimento institucional de sua obra, que foi considerada, por muito tempo, destinada a um nicho de leitores cult. A coisa tem descambado até a cotação de seu nome para o Nobel de Literatura nos últimos anos.
A surpresa vem do veste de que Aira escreve uma vez que quem rejeita até a teoria de “boa literatura”. Não exclusivamente no sentido de ser um plumitivo marginal, mas uma vez que quem “troca os sinais” das hierarquias literárias, dando, ao mesmo tempo, muitas provas de saber muito esses sinais.
Em um bom momento para o responsável, chegam ao Brasil quatro de suas “novelitas” que, completamente diferentes entre si, apresentam Aira uma vez que é: inapreensível.
“A Prova”, “Atos de Filantropia”, “O Congresso de Literatura” e “O Vestido Rosa” nem parecem saídos da mesma caneta à primeira vista, mas compartilham uma transgressão sofisticada e bem-humorada. São quatro narrativas curtas, uma vez que a maior segmento de seus muitos livros que variam, sem muita cerimônia, entre filosofia densa e nonsense deliberado, de modo que o próprio leitor se pergunta se o responsável está falando sério ou se está de folgança. É esse efeito que faz de seus livros experiências vivas.
Perspicaz, Aira não quer ensinar zero, a não ser a diversão de imaginar em linguagem literária. Não existem saltos evolutivos ou arcos de aprendizagem, exclusivamente devaneios que vão longe demais, mas não chegam a entediar porque Aira sabe o que está fazendo. E, embora não se dirija explicitamente à política, fica simples que não se trata de nenhum desavisado formalista.
Em “A Prova”, uma narrativa cyberpunk em que duas garotas tentam convencer uma terceira que passa pela rua a transar com elas, o leitor pode enxergar uma parábola irônica (até porque uma das meninas se labareda Lênin e a outra, Mao), mas não deixa de se impressionar com os rumos que a narrativa toma em caráter expansivo, embora exista uma cronologia linear.
Depois de um diálogo longo e pleno de momentos filosóficos dentro de um fast-food, as garotas cansadas partem para dar uma prova de paixão à terceira. E o fazem em um supermercado de outra rede argentina famosa. Elementos da contemporaneidade mais chã se misturam com reflexões eruditas.
“Atos de Filantropia” narra os dilemas de um sacerdote da Igreja Católica em torno da filantropia, em que fica simples que seu interesse está em viver uma vida luxuosa, embora muitas cambalhotas discursivas tentem justificar essa escolha.
Apaziguando, de tempos em tempos, a própria consciência, o padre opta por erigir para si uma vivenda tão portentosa que não obrigaria a nenhum ato de prescindência, pois, na incerteza se construiriaa uma livraria pequena ou uma grande, por exemplo, o protagonista mandava fazer as duas. A atitude rende alguma crise de consciência, “pois Satanás opera justo com essas armas: com a irrupção sorrateira das possibilidades na veras”. Mas rende ao leitor uma “novelita” prazerosa.
“O Congresso de Literatura”, um de seus textos mais famosos, é narrado pelo próprio responsável, que vai a um encontro na Venezuela e, com um desenrolar meio de ficção científica, tenta produzir um tropa de clones do plumitivo Carlos Fuentes, cuja obra é um dos pilares do “boom” latino-americano, para dominar o mundo.
“A primeira segmento da operação, a que mais exigia de mim, estava cumprida: conseguira uma célula de Carlos Fuentes, depositara-a no clonador, o qual permaneceu funcionando em condições ótimas.” Uma galhofa inacreditável.
“O Vestido Rosa” é inspirado em um raconto de Guimarães Rosa, “O Recado do Morro”. Aira é um grande entusiasta da literatura brasileira, que considera melhor do que a argentina.
É a história de um vestidinho que seria oferecido de presente a uma recém-nascida. O encarregado de levá-lo é um palhaço chamado Asís. O pacote é roubado no caminho e o vestido rosa passa pelas mãos de “índios”, soldados do general Roca, gauchos, vaqueiros. Muitos anos depois, o vestido chega às mãos de Asís, já em uma situação muito dissemelhante.
Talvez o sucesso recente de Aira se deva a um esgotamento da preocupação dos leitores pela experiência individual, já que, cá, a imaginação vem antes da representação.