Quando faço as malas pra visitar família e amigos fora da Espanha, um item nunca pode faltar entre calcinhas e meias: óleo de oliva. Quando sobra um espaço, uma garrafa de Rioja e um jamón.
Desde a Antiguidade, essa maravilha verde-dourada, rica em polifenóis e outros micronutrientes mágicos, enaltecida por seu potencial poder antioxidante, antiinflamatório e cardioprotetor e ícone da dieta mediterrânea, é conhecida cá dos oceanos europeus uma vez que ouro líquido.
Recentemente, porém, o mítico apodo (sobrenome) vem ganhando outra razão de ser.
A Espanha, líder mundial de produção e exportação de óleo, enfrenta neste princípio de 2024 o terceiro ano continuado de más colheitas, devido às contínuas secas e temperaturas recorde na península.
É o pior cenário em mais de quatro décadas, com reflexos dramáticos nos preços.
A subida no valor desse item imprescindível da cesta básica espanhola já soma 164% desde 2021, quando começaram as secas pra valer. Atualmente, o litro supera os 10 euros (R$ 53) em média, o duplo do valor base de unicamente um ano detrás.
Isso levou a uma novidade recente nos supermercados: rebate nas garrafas mais caras para prevenir furtos. Óleo tá virando vinho de luxo.
Estima-se que, em 2024, o estoque entressafras, crucial para regular o mercado, poderá tocar um fundo de poço sem precedentes.
Com isso, tem gente já vaticinando uma espécie de apocalipse do óleo pra meados do segundo semestre, quando o resultado poderia realmente desvanecer das prateleiras.
RACIONAMENTO
Com a subida de preços, as vendas domésticas caíram. Segundo a Associação Pátrio da Indústria Envasadora e Refinadora de Azeites Comerciais (Anierac), a queda nas vendas da versão extravirgem chegou a quase 40% na última colheita (de outubro a dezembro, principalmente) em relação ao mesmo período do ano anterior.
Muitos consumidores vêm passando do extravirgem, de melhor qualidade e menor acidez, para o óleo virgem, de uma categoria ligeiramente subordinado, ou outros óleos refinados, deixando o de oliva para parcimonioso uso en crudo.
Com isso, outro fenômeno paralelo vem acontecendo, uma vez que nota Jordi Pascual, responsável pela ramificação de óleo da Unió de Pagesos (União de Camponeses, principal sindicato agrícola da Catalunha), ao La Vanguardia: o encarecimento do óleo refinado.
“Se o extravirgem é substituído por um refinado, leste aumenta de preço porque tem mais demanda, e se dá a situação de que um óleo (de oliva) de qualidade custa o mesmo que um refinado”, diz.
A incerteza em torno do horizonte do óleo de oliva também tem gerado um modesto efeito à la papel higiênico em idade de pandemia. Em outras palabras: já tem gente estocando por terror de que falte.
“O consumidor teme permanecer sem óleo (…) e compra em maior quantidade”, opina Enric Dalmau, presidente da DOP Les Garrigues, uma das principais regiões produtoras de óleo da Catalunha, conhecida pela variedade arbequina, de sabor suave e afrutado.
***
Quando cheguei na Espanha, muitos anos detrás, fui logo me enturmando com os locais e compareci numa festinha sítio. Foi minha primeira experiência social transcendental fortuito com o tema Óleo de Oliva.
Uma amiga preparava o icônico pan tumaca (pa amb tomàquet, vulgo pão com tomate, que, pra quem não sabe, é um séquito catalão e espanhol onipresente em bares, restaurantes e veladas milénio).
Primeiro choque: ela esfregava os tomates (da modalidade “de penjar”, por sinal muito rosto — e cada vez mais, graças à crise climática) sobre as fatias de pão e jogava fora os frutos esmilinguidos.
— Que cê tá fazendo! — gente, fui criada por uma mãe que veio do campo e às vezes só tinha arroz ou repolho pra consumir, ou nem isso. Tem essa de jogar comida no lixo, não.
— Susssana, esse tomate a gente não come — me explicou, amável-paciente.
Segundo choque, sem vaselina: a mesma amiga catalã temperando a salada e jogando o que me pareceu meio litro de óleo de oliva sobre as folhas.
— Pero QUE CE TÁ FAZENDO, MIGA! — já virou meu bordão, ces tão vendo.
— Susssana — obsequioso, mas firme: — Relaxa, o óleo é bom pra saúde!!
Fast forward muitos anos e hoje em dia eu até esfrego tomate no pão (mas uso o que sobra) e até sou mais liberal com o óleo. Digo, liberal, mas com parcimônia.
***
Na minha morada, em um pueblo às margens do Mediterrâneo catalão, eu e o namorildo nativo temos nossas divergências domésticas a reverência da carestia do óleo.
Eu sou em prol do racionamento inteligente; ele, de penetrar mão de outras coisas, mas jamás do uso liberal del aceite de lo bueno, com que ele banha BANHA tudo o que consome diariamente, de pão a carnes, saladas, sopas e pratos de qualquer espécie.
Porquê, de resto, faz muita gente espanholis que conheço.
Outro dia quase deu divórcio quando eu confessei:
— Paixão, eu tenho misturado óleo de mendubi com o óleo de oliva pra cozinhar.
— U Q!
— … mas se você nem percebeu a diferença! Deixo o óleo bom pra finalizar os pratos… — [insert crescente expressão de choque do interlocutor]
Certeza que acabo de matar qualquer espanhol do corazón. Mas é que num tem bolsillo que aguente. Eles não sabem que, pra um brasílio, óleo de oliva não é e nunca foi cesta básica…
(continua… / to be continued / continuará…)