Crise Do Clima Engole Literatura Além Da Ficção Científica

Crise do clima engole literatura além da ficção científica – 27/05/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

A era do aquecimento global apresenta um duelo gigantesco tanto ao siso geral quanto à ficção literária, argumenta o noticiarista indiano Amitav Ghosh.

“Os eventos climáticos da nossa estação têm cimo proporção de improbabilidade. Não é fácil acomodá-los ao mundo deliberadamente prosaico da ficção séria em prosa”, escreve ele.

A inverossimilhança é inimiga dos escritores, e introduzir o improvável na literatura faz com que ela “corra o risco de ser banida para as moradias humildes” da fantasia, do terror e da ficção científica. “É porquê se, na imaginação literária, as mudanças climáticas fossem de alguma forma semelhantes a extraterrestres ou viagens espaciais.”

Não faz muito tempo que Ghosh escreveu isso. Seu livro “O Grande Desatino” foi publicado com estrondo em 2016 e abordava não só a sátira literária, mas a crise de imaginação que faz com que toda a sociedade ocidental assista meio catatônica aos eventos que, porquê indica a ciência, devem mudar radicalmente o mundo que conhecemos.

O livro chegou ao mercado brasiliano pela Quina há dois anos. E agora, quando o repórter pergunta ao responsável se um pouco mudou nesse período, ele é assertivo. “Sim, muito.”

Ghosh assinala que desde a publicação do romance “The Overstory” pelo americano Richard Powers —que sairá no próximo ano pela Todavia—, houve uma torrente de literatura de preocupação climática mais evidente. Mas o indiano diz não ter ressaltado o suficiente em sua obra que o problema nunca foram os escritores, mas um “ecossistema literário” que entendeu “tudo incorrecto”.

“O mundo da literatura, as editoras, a sátira literária, é na verdade muito conservador”, afirma ele, em entrevista por videoconferência. “E dá para entender, porque são pessoas muito muito educadas, com frequência vindas de famílias de escol, portanto não levam a sério zero fora da literatura realista tradicional.”

O tipo de ficção consagrado a partir do século 19, irradiado da Europa, tem no meio as narrativas individuais e gira em torno de umbigos humanos —por isso, segundo Ghosh, são pouco compatíveis com acontecimentos porquê as tragédias climáticas, que irmanam a todos num coletivo e deslocam o foco para a natureza.

Um sintoma da mudança recente que houve nesse julgamento estreito de qualidade literária, diz ele, está na valorização de escritoras que pesam a mão numa “literatura da imaginação”, a exemplo de Octavia Butler, Margaret Atwood e Ursula Le Guin, que se mantêm mais relevantes que muitos autores realistas.

A pesquisadora Ana Rüsche, que é doutora pela Universidade de São Paulo e se tornou referência na intersecção entre estudos literários e climáticos, reforça que o cânone ocidental sempre teve uma concepção rígida de progresso, desprezando narrativas divergentes para a vala da literatura menor.

Mas ela diz que a preocupação com ecologia e “os efeitos da ação humana desmesurada” no planeta aparecem na arte desde pelo menos o século 18. Pense até mesmo no monstro vegetariano de “Frankenstein”, de Mary Shelley —não por contingência, encarada porquê uma das obras inaugurais da estante da ficção científica.

Aliás, o que são clássicos da literatura brasileira porquê “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Não Verás País Nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, senão ficções sobre as crises climáticas —que, à sua estação, não foram lidas com esse rótulo?

Hoje, quando acontecimentos catastróficos porquê o do Rio Grande do Sul mostram que a emergência não é mais secção do porvir, e sim do presente, também cresce a boa ficção que lida com o tema, aponta Rüsche. A pesquisadora cita, por exemplo, “A Extinção das Abelhas”, romance de Natalia Borges Polesso que foi finalista do Jabuti, e “O Deus das Avencas”, coleção de narrativas curtas de Daniel Galera.

A escritora gaúcha Morgana Kretzmann acaba de lançar “Chuva Turva”, um livro que tem sido recebido porquê premonitório nos círculos de leitura que ela tem frequentado —apesar de sua história se distanciar muito das chuvas trágicas que tomaram seu estado, ela ainda é carregada de tensão com o meio envolvente.

Na trama policial, o Parque Estadual do Turvo, que fica na mote do Rio Grande do Sul com a Argentina, é ameaçado por queimadas e pelo dilúvio de uma hidrelétrica empurrada ali por políticos maliciosos —os personagens também expressam volta e meia o choque com o calor repentino e as mudanças no território uma vez procedente.

“Antes as pessoas diziam de rosto que não iam gostar de um livro sobre questões ambientais”, afirma a autora. “Percebi uma mudança, simples que um pouco em função da crise no Sul, mas sinto que as pessoas não estão vendo mais isso porquê um pouco rente, há um interesse que se nota até nas vitrines das livrarias.”

A editora Luara França, hoje gerente editorial da Aleph, lembra mesmo que costumava ser lugar-comum no mercado rejeitar, ou ao menos desestimular, a publicação de obras que tocassem em discussões climáticas porque, supostamente, “ambientalismo não vendia”.

Tanto ela quanto Kretzmann citam um mesmo responsável porquê ponto fulcral de viradela no debate público: o líder indígena Ailton Krenak, colunista deste jornal que passou a ampliar um pensamento que foge ao umbiguismo ocidental em publicações populares porquê “Ideias para Protelar o Término do Mundo” e “A Vida Não É Útil”.

A arte não tem obrigação de zero, acrescenta Kretzmann, mas “pode colaborar com mudanças de pensamento”. “Pode fazer com que surja uma consciência, principalmente nas novas gerações, para que entendam que o tique-taque do relógio está gritando e as pessoas fingem não escutar.”

Enfim, o indiano Amitav Ghosh é cético diante do efeito de tragédias porquê a do Rio Grande do Sul para conscientizar um país. “É estranho que tantos cientistas achem que o clima vai fazer o trabalho da política”, comenta ele. “Não vai.”

Folha

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *