Brilhava no dedo de Lucrécia Bórgia um aro. Debaixo da pedra, diz a mito, escondia o veneno que usava para intoxicar seus rivais, uma de suas manias. Isso é, quando não ia para orgias ou transava com o irmão.
Essas imagens estão incrustadas nessa mulher, que viveu de 1480 a 1519. São, no entanto, falsificadas. Ou, nas palavras do dramaturgo italiano Dario Fo, são uma “peta cultural” propagada pela literatura.
Dario Fo narra sua versão da história no livro “A Filha do Papa”. O romance, publicado na Itália em 2014, é uma espécie de resgate para um personagem tão injustiçado. Chega agora, dez anos depois, ao Brasil.
O texto é resultado da pesquisa do responsável, que usa documentos da idade para provar que Lucrécia foi, na verdade, vítima das conspirações de sua ambiciosa família. Em próprio, de seu pai, o papa Alexandre 6o.
Mas “A Filha do Papa” não é um livro de história. É ficção, com todo o recta às invenções e floreios do gênero. Ainda assim, Dario Fo cumpre um papel historiográfico, ao propor novas interpretações para o pretérito.
Dario Fo já tinha contribuído à história. Sua obra —em sua maioria, dramatúrgica— resgata o estilo italiano commedia dell’arte, popular na Europa entre os séculos 16 e 18, com atores mascarados e improvisação.
Foi o trabalho no teatro, onde também atuou e dirigiu, que lhe trouxe o Nobel de Literatura em 1997. Já “A Filha do Papa” foi sua primeira exploração do romance, ou seja, uma experimentação em outro gênero.
A teoria é óptimo porque contraria uma longa tradição de textos negativos sobre os Bórgias, deprezados por autores porquê Alexandre Dumas, de “Os Três Mosqueteiros”, e Victor Hugo, de “Os Miseráveis”.
Uma das razões para tanta má vontade com os Bórgias é a sua origem. A família vinha da região de Valência, no sudeste mediterrâneo espanhol. Criticá-los era um jeito de criticar a Espanha, que estava em formação.
Naquela Europa fraturada por disputas políticas e religiosas, os rivais dos espanhóis disseminavam uma poderoso propaganda contra o povo e sua religião, o catolicismo. Essa ideologia é conhecida porquê “mito negra”.
Lucrécia foi vítima também, é evidente, do longo hábito patriarcal de transformar mulheres poderosas em vilãs, um pouco que ainda é manante. O indumentária de que Lucrécia teve influência na sede papal incomodava bastante.
Essa mistura de historiografia com literatura resulta em um texto sofisticado. Dario Fo desafia, de certa maneira, a própria teoria de um romance histórico, mostrando que esse gênero reflete seu próprio tempo.
Nesse sentido, inclusive, há vislumbres de uma sátira ao tempo presente. Quando o narrador fala de “mamatas”, “licitações” e “depravação” parece fazer acenos para a política contemporânea da Itália.
Fica evidente, na leitura, que o redactor veio da dramaturgia. Ele toma emprestado o vocabulário do teatro, usando expressões porquê “tentativa universal”, “saída de cena” e “encolher a cortinado” enquanto narra sua história.
Da dramaturgia, Dario Fo também traz a predileção pelos diálogos. Há quase nenhuma descrição e as ações parecem deslocamentos no palco. Há poucos elementos para o leitor visualizar a história, além das falas.
Apesar de toda a genialidade do texto e de seu valor para o debate histórico, o enredo às vezes deixa a desejar. Lucrécia vai de um marido a outro, entre mortes e divórcios, mas o seu personagem nunca progride.
Não fica evidente, em termos narrativos, o que move a protagonista. De todas as descrições, o que se destaca é a teoria —oposta à mito— de que Lucrécia Bórgia era uma bondosa mulher que não queria mal a ninguém.
Os outros personagens tampouco têm muita profundidade. Seu pai e seu irmão César são os vilões da trama, usando Lucrécia para fazer e desfazer alianças entre europeus. Não há muito aliás, no entanto.
A questão de gênero também poderia ser mais muito explorada no texto. Para um livro que se propõe a resgatar um personagem feminino, “A Filha do Papa” não tem muitas outras mulheres para além de Lucrécia.
Fica faltando, no final das contas, a tensão narrativa que a mito negra soube tão muito explorar com o mito de que a filha ilegítima do papa espanhol abria, sorrateiramente, um aro para envenenar seus inimigos.