A Defensoria Pública da União (DPU) se manifestou a reverência da impossibilidade da emprego jurídica da tese do ‘racismo revirado’ no Brasil. Em nota técnica, divulgada na terça-feira (2), o órgão aponta a premência de que as normas que identificam e criminalizam o racismo recebam versão histórica, não podendo ser entendidas e aplicadas de forma literal. A sintoma se dá no contexto do julgamento de um habeas corpus protocolado no Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL) em um caso em que se apura a ocorrência de injúria racial contra um varão branco.
Elaborada pelo Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da DPU, a nota alerta para os riscos de que a tese possa se propagar uma vez que uma argumentação válida no Judiciário brasílico. Os defensores argumentam que a Lei de Racismo (Lei nº 7.716/89) tem por objetivo proteger grupos sociais historicamente discriminados em razão de sua própria existência.
No documento, a DPU cita uma vez que passíveis de ser vítimas do racismo, por exemplo, “a população negra, os povos originários, os praticantes de religiões e religiosidades de matriz africana, os imigrantes africanos e latinos, todos eles pertencentes a grupos silenciados, perseguidos e mesmo exterminados por séculos de colonização europeia nas Américas. Não sendo passível de inclusão nesse grupo pessoas pertencentes a coletividades historicamente hegemônicas e privilegiadas”.
A nota também destaca que, na identificação das possíveis vítimas do racismo, é preciso não olvidar das práticas discriminatórias da sociedade brasileira que sempre se voltaram a grupos que sofreram e ainda sofrem o processo de marginalização e exclusão social e cultural.
“Ora, proferir que uma pessoa branca é vítima de racismo no Brasil tem uma vez que premissa a invenção de um contexto histórico e social de exclusão, silenciamento, violência e extermínio que nunca existiu para esse segmento populacional. Por evidente, nem a lei, nem os tribunais, têm a capacidade de (re)edificar essa História, que, ao termo e ao cabo, sequer poderia ser tida uma vez que revisão, mas uma vez que verdadeiro negacionismo histórico”, diz a DPU no documento.
A DPU destaca que é um equívoco interpretar a legislação de forma literal, possibilitando que qualquer pessoa seja vítima de racismo. “Na versão desta lei, o juiz deve considerar uma vez que discriminatória qualquer atitude ou tratamento oferecido à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, susto ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou proveniência”, diz o texto.
“A potencial adoção da tese do ‘racismo revirado’ pelo Poder Judiciário nega que as práticas discriminatórias, segregacionistas e violentas da sociedade brasileira sempre tiveram uma vez que foco grupos étnico-raciais específicos, a exemplo da população negra e dos povos originários. Vai além. Cria precedente que descredibiliza e mesmo invalida a luta histórica antirracista, já que abre divergência quanto ao real significado do racismo no Brasil”, continua a nota técnica.
A sintoma pontua ainda a premência de que as normas que identificam e criminalizam o racismo no Brasil recebam uma versão histórica, sistemática e teleológica. “Não é verosímil utilizar uma norma criada para a proteção de grupos e pessoas específicas, porque vítimas de discriminação racial, para a salvaguarda de indivíduos ou coletividades sem qualquer histórico uma vez que sofredor do racismo”.
Entenda o caso
Em janeiro deste ano, o Ministério Público de Alagoas apresentou denúncia de injúria racial contra um varão preto, baseada na queixa-crime de um italiano que disse ter tido ofendidos a “honra, o decoro e a reputação em razão da sua raça europeia”. Na peça inicial, a advogada do italiano diz que “as ofensas proferidas pelo querelado [acusado] denegriram a imagem e ofenderam a honra subjetiva” de seu cliente.
A Justiça alagoana acatou a denúncia e tornou réu, por injúria racial, o varão preto que teria dito ao italiano: “essa sua cabeça europeia, branca, escravagista, não te deixa enxergar zero além de você mesmo”.
Na ação, os desembargadores do TJ-AL utilizaram uma vez que argumento para indeferir o pedido de trancamento da ação penal de que “o delito em questão pode ser cometido contra qualquer pessoa, independentemente da sua cor, raça ou etnia, caracterizando-se por ofender a honra de alguém. Nessa esteira, a Lei protege integralmente, independente [sic] de sua origem étnica”.
Segundo o Instituto Preto de Alagoas (Ineg), responsável pela resguardo do varão preto, levante havia sido lesado pelo europeu em relação à compra de um terreno, e também tinha relação trabalhista com ele.
Ao usar a lei para punir um varão preto de suposto racismo cometido contra um varão branco, de origem europeia, a ação admite a existência do “racismo revirado”, uma verdadeira anormalidade jurídica, na avaliação do instituto. Diante disso, o Ineg estuda levar o caso para estudo no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Para a DPU o caso mostra que até mesmo quando a lei é feita para proteger grupos minoritários, eles acabam sofrendo criminalização por força do luxo estatal. No caso, por meio de uma superficialidade hermenêutica que legitima interpretações literais, fortalecendo o constrangimento a grupos vulnerabilizados a partir da tese do “racismo revirado”.
“Diante de todo o exposto, conclui-se não ser aproveitável juridicamente a tese do “racismo revirado”, que somente pode encontrar sonância no tino generalidade e em ambientes despidos de parâmetros científicos e de qualquer estudo histórica e social da veras brasileira”, afirma a nota técnica.