Você já imaginou a sua própria morte? O economista e ensaísta Eduardo Giannetti estimula que o faça.
“O último suspiro, a preparação do corpo, o velório, a cerimônia de cremação, a dissipação das cinzas no mar, conforme o seu libido; quem chorou, quem dissimulou, quem sumiu; a possibilidade de checar, sem ser visto, se a sua escassez foi (ou não) sentida —e por quem?”
E para quem pensa na morte uma vez que o “zero integral”, é provável vislumbrá-la em termos que não sejam especulativos? Finalmente, “uma vez que pode alguém consciente conceber a verdade da absoluta inconsciência ou escassez de si?”
Por que Giannetti está falando sobre isso agora? De onde vem a insubmissão à finitude humana? Spoiler: não são só os religiosos que se rebelam contra essa teoria, não. Há muita oposição secular a ela também.
Aos 68 anos, ele reconhece à Folha que “a idade dá uma perspectiva”. Fora que “ver pessoas muito queridas desaparecendo também suscita uma inquietação muito grande”. Pode ser, pode ser.
Também é presumível que tenha alguma coisa a ver com seu pai não deixar que ele dormisse com o lucivelo ligado. “Ele proibia, o que talvez tenha estimulado uma reflexão um pouco mais angustiada.” A trevas no quarto era o “terror soberano” do menino Eduardo.
Tudo isso vira matéria-prima para “Imortalidades”, livro que Giannetti publica no formato de microensaios. O responsável perpassa em 432 páginas suas reflexões sobre leste tema definitivo para a experiência humana.
Em uma hora, ele discorre sobre a “imortadigitalização”, que procura driblar o decomposição da músculos com lucidez sintético, medicina regenerativa, terapia genética e grande elenco científico. Em outra, discute “a demolição da solução religiosa para o esfinge do após-a-morte”, porque vai que Freud explica.
Sigmund Freud via a religião uma vez que um colchão que amortece a inevitabilidade que é morrer. Uma ilusão, sobretudo.
O psicanalista já tinha 70 anos e lidava com um cancro no maxilar quando, em rara entrevista, respondeu se acreditava que, “de alguma forma que seja”, nossa personalidade permanece posteriormente morrermos. Respondeu que não pensava nisso. “Tudo que vive perece. Por que deveria o varão ser uma exceção?”
Logo ele, que havia criado a psicanálise e prescrito que “no inconsciente, cada um de nós está convicto da sua imortalidade”, era indiferente ao libido de ser imortal? “Pelo que me toca, estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno enfado de viver finalmente passará”, reagiu.
Não surpreende que àquela profundidade da vida Freud “declare-se farto da existência”, diz Giannetti. Mas o ensaísta também não vê muito valor em desdenhar dessa natividade de angústia que é nossa exigência mortal. A tentativa de superar a morte biológica, argumenta, “não é um artefato da doutrinação religiosa, ainda que tenha sido sequestrado, monopolizado e moldado por ela”.
Giannetti experimentou na puerícia um “anêmico catolicismo de terço, apostila e catecismo”. Zero que o tenha convicto. Conta que não endossa nenhuma religião institucionalizada. Ainda assim, “as questões que realmente importam para mim estão comumente associadas à religiosidade”, diz.
O ímpio, inclusive, pode padecer do mesmo dogmatismo que o mais crédulo dos crentes, afirma. O cientismo, que labareda de “doença infantil da ciência”, se põe supra de outras formas de decodificar a verdade, uma vez que a religião. “Quando, por questões empíricas e lógicas, a ciência não tem zero a manifestar sobre o que vem depois da morte.”
“A desilusão ateia”, afirma o responsável, é sacar que “a morte de Deus não abole o mistério, recrudesce-o”.
Sobre a idealização de uma justiça póstuma, o tal julgamento final que recompensaria uma vida terrena virtuosa, resgata palavras atribuídas ao imperador romano Marco Aurélio: “Seria bom morrer, se houver deuses; triste viver, se não houver nenhum”.
São muitas as abas que Gianetti abre nesta novidade obra, e muitas as fontes das quais bebe. Tanto o brasiliano Machado de Assis quanto o prateado Jorge Luis Borges escreveram contos intitulados “O Imortal”, o que não lhe passa vencido.
De Carlos Drummond de Andrade, pesca o poema “Homenagem”, que entrelaça os nomes de dez autores suicidas que “escolheram o dia, a hora, o gesto, o meio, a dis-solução”: Walter Benjamin, René Crevel, Hart Crane, Vachel Lindsay, Jack London, Cesare Pavese, Raul Pompeia, Sá-Carneiro, Virginia Woolf, Stefan Zweig.
Aproveita Giannetti para sugerir a reunião de pensadores e escritores que possivelmente morreram virgens: Tomás de Aquino, Álvares de Azevedo, Borges, Emily Dickinson, Hobbes, Kant, Kierkegaard, Leopardi, John Stuart Mill, Newton, Pascal, Fernando Pessoa, Antero de Quental, Ruskin, Adam Smith e Simone Weil. “Nenhum deles, por tudo que sabemos, conheceu o dia, a hora, o pique, o ato da dis-seminação.”
Por outro lado, também não esquece que “a língua francesa tem um nome sugestivo para o orgasmo”: la petite mort —a pequena morte.