A Feira do Livro em São Paulo recebeu escritores gaúchos na noite fria desta segunda-feira para homenagear Porto Contente, origem da feira literária que foi uma de suas maiores inspirações.
Em conversa mediada pela jornalista Tatiana Vasconcellos, seis autores que moraram no Rio Grande do Sul se reuniram para lembrar a “guerra climática” que o estado vive depois as chuvas que deixaram tanta morte e ruína.
Mar Becker, Jeferson Tenório, Clara Averbuck, Veronica Stigger, Morgana Kretzmann e Paulo Scott são diversos em personalidade e estilo literário, mas se juntaram nessa mesa pelo pertencimento territorial.
“Porto Contente está em meus livros, está na minha memória e também está no que eu me tornei”, disse Kretzmann, autora de “Chuva Turva”. O livro com título alguma coisa premonitório foi lançado antes das enchentes de maio.
Becker, que encantou o público com seu sotaque do interno sulista, falou do incômodo em rever seus escritos sobre chuva —”A Mulher Submersa” é o título de seu primeiro livro. “Muitos colegas escreviam sobre a chuva de uma forma tão romântica, e essa chuva agora é dissemelhante, eu sinto a chuva de forma dissemelhante”, contou a autora nascida em Passo Fundo.
Embora não vivam mais no estado, os autores se abalaram com a tragédia por preocupação com parentes e amigos, além de um tino de pertencimento. “Foi um desespero que eu nunca tinha testado, nunca tinham mexido na minha raiz dessa forma”, afirmou Averbuck.
A autora, que deixou o estado há 22 anos, contou que se formou escritora devido às suas visitas à Feira do Livro de Porto Contente, que inspirou o festival do Pacaembu.
Vasconcellos trouxe dados da pesquisa Datafolha para ilustrar a desigualdade escancarada com a tragédia: entre os que tiveram prejuízos materiais com as enchentes, 52% são pretos e 26% são brancos. E 47% das famílias que perderam casas, móveis, eletrodomésticos ou o próprio sustento ganham até dois salários mínimos.
“A grande secção da população afetada é o pessoal da periferia”, afirmou Tenório. “Isso diz muito sobre racismo ambiental.” Kretzmann trouxe dados para provar a variedade dentro do estado, que tem o maior número de terreiros e praticantes de religiões afro-brasileiras no Brasil.
“O Rio Grande do Sul é um estado do candomblé, da umbanda, do batuque —tem muitas pessoas, muitas comunidades que são resistência, e negar isso é ajudar no apagamento desses grupos”, apontou a autora nascida em Tenente Portela. “A resistência gaúcha já viveu e ainda vive, e um exemplo disso somos todos nós, que estamos cá hoje.”
Ao ser questionada sobre uma vez que as enchentes afetaram sua escrita, Averbuck afirmou que teve vontade de ortografar um manifesto, e foi isso que Scott fez. Ao receber a termo, o repórter porto-alegrense se levantou para ler uma missiva ocasião ao prefeito Sebastião Melo.
“O senhor não teve cultura para gerir a manutenção dos equipamentos que poderiam evitar os trágicos impactos do sinistro climatológico que causou estragos imensos a essa cidade e, por isso, deve ser responsabilizado social e criminalmente”, leu o responsável para a plateia que o escutava atentamente.
“Pedimos que renuncie, junto com seu vice-prefeito, e deixe a população de Porto Contente voltar a sonhar com uma cidade mais humana, menos truculenta, menos insensível, mais segura.”
Ele também leu seu poema “Exu Mário Quintana”: “Antes desse susto que hoje sinto de ti, cidade sem simetria, perdão pelo ódio em teu verbo”. O poema foi completado por Stigger, que fez referência a uma cantiga de Kleiton e Kledir: “Quando eu ando assim meio down / Vou pra Porto e, bah, tri lícito”.
Os autores evidenciaram ao longo de todo o bate-papo que as enchentes se tornaram uma tragédia climática devido à má gestão pública.
“Foi muita inoperância por secção tanto do prefeito, Sebastião Melo, quanto do governador, que também tem nome, se labareda Eduardo Leite”, falou Stigger, a primeira da mesa a mostrar responsáveis. “Só para dar um exemplo, de 26 bombas que deveriam estar funcionando [para remover água acumulada], só quatro estavam.”
Diante de tantas perdas enfrentadas pelos gaúchos, os escritores chamaram a atenção para objetos aparentemente banais. Becker lembrou as pessoas que, depois perderem a morada, se preocupavam em restaurar suas fotos.
“As pessoas perderam o que a gente poderia invocar de uma materialidade da memória”, disse Stigger, que vê o repórter uma vez que um “guardião da memória” e contou da sua vontade de ortografar as memórias perdidas dessas pessoas, recuperando seus relatos.
“A recuperação das fotos é muito simbólica, porque mostra o que de roupa importa na nossa vida —as casas se foram, a cidade foi varrida, mas vejam o que preocupa as pessoas”, disse Tenório.
Vasconcellos encerrou a mesa propondo à plateia um manobra. “Sugiro que todos cá passem um minuto pensando o que perderiam se sua morada ficasse, de repente, coberta de chuva.”
A Feira do Livro, em parceria com a comunidade Redelê, está fazendo uma coleta de doações de livros para bibliotecas escolares e comunitárias do Rio Grande do Sul que foram impactadas pelas enchentes. São aceitos livros de literatura, literatura infantil e juvenil, quadrinhos e gibis. O ponto de coleta é o expositor 10.