A vida pode ser inventada e reinventada. E as vítimas da dominação têm um caminho sincero para se libertar, uma possibilidade maior para elas do que para seus agressores.
Foram essas as duas mensagens do noticiarista gálico Édouard Louis na Flip, na noite deste sábado (12), em uma das mesas que poderá ser lembrada porquê uma das melhores de todas as edições da sarau literária.
Possuinte de um projeto estético-político consistente, Louis falou de uma literatura que convida seus leitores a uma transformação de si e do mundo —em vez de permanecer aprisionada na desesperança.
Com isso, entregou uma fala plena de vontade de poder e contundência política. E ofereceu um manual de libertação para humilhados.
Ele estreou com o romance autobiográfico “O Término de Eddy”, há uma dezena, e desde portanto vem escrevendo livro depois livro sobre ter desenvolvido na pobreza, ter vivido a violência em vivenda e fora dela —e também ter se tornado um fugitivo, escapando das origens através dos estudos e da subida social, inventando uma novidade vida para si.
“Os que são menos livres são os que conseguem se libertar”, disse ele. “Fugimos porque não temos escolha. Minha mãe teve que se reinventar porque não tinha escolha. Assim, a falta de liberdade se torna a possibilidade de emancipação.”
Ele se referia à puerícia numa família pobre no setentrião da França, com um pai violento, e os ataques homofóbicos que sofria, num contexto de poderoso dominação masculina.
“Um tanto que me interessa é o paradoxo da dominação. Todos que eram dominantes na minha puerícia, porque encarnaram a masculinidade, hoje estão destruídos. Meu pai tem 50 e já não pode andejar. Meu irmão morreu.”
Ele e sua mãe, pelo contrário, foram capazes de encontrar a liberdade porque sabiam que eram dominados. Seu pai e irmão, por sua vez, acreditavam que a violência que cometiam era uma escolha.
“Um dia, minha mãe pensou: ‘Vou retomar do mundo o que me foi roubado’. Eu, porquê gay, nunca pensei que tivesse escolhido a minha vida.”
No seu processo de fuga dessas origens, Louis mudou a própria figura, o jeito de falar, os gestos que faz, a forma de andejar, numa imitação da escol da qual ele passou a fazer secção.
O responsável falou que os ricos também estão imitando seus pais e outros ricos que conheceram desde muchacho.
“Não há pessoas autênticas e outras que imitam. Há pessoas que têm o recta de imitar e outras que não tem o recta de fazê-lo”, disse ele. “Eu imito energicamente e os convido a fazer a mesma coisa. Sejam imitadores.”
Ele foi aplaudido de forma entusiasmada depois dessa e de outras falas, numa tenda dos autores apinhada de pessoas, que assistia a tudo com a respiração presa. A identidade, acrescentou em outro momento, é uma fantasia.
A mediação do editor e jornalista Paulo Roberto Pires, calcada em uma leitura muito cuidadosa da obra de Louis, cumpriu a função de ajudar o responsável a entregar grandes reflexões.
O noticiarista explicou, por exemplo, o que procura na exploração de linguagem de seus romances: uma literatura de confronto.
“No século 21, todo mundo conhece a verdade. O papel da literatura não é informar sobre alguma coisa. Ela tem o papel de forçar o público a ver o que não quer mais ver”, afirmou. “A literatura de confronto é formal e política. É preciso reinventar a forma para que as pessoas que não podem ver o mundo possam vê-lo.”
Ele se referia às reações que seus livros provocaram entre jornalistas e políticos franceses nesta dezena de curso literária. “Quando eles me atacam, penso que é muito bom, porque eles foram forçados a esse confronto.”
Crítico de políticos que defendem cortes de benefícios sociais para famílias porquê a dele, Louis aponta nominalmente, em seus livros, políticos que ele acusa de promoverem a violência contra homens porquê seu pai.
E, embora defenda que há uma inocência importante mesmo em meio à violência, não há porquê equiparar “dominados e dominadores”.
“Quando falei, em ‘Quem Matou Meu Pai’ sobre a violência de Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e Emmanuel Macron, jornalistas me disseram que não expor que eles são responsáveis”, disse ele, antes de emendar e ser aplaudido: “Chirac é responsável, Netanyahu é responsável, Biden é responsável. Mas meu pai não é responsável.”
Louis mostrou, assim, uma complexa visão de mundo —ao mesmo tempo em que é afiada e radical, pode ser generosa e compassiva.
Em um dos momentos mais tocantes do encontro, o mediador questionou Louis se o responsável vê espaço para reconciliação com a família que cometeu violências contra ele —em um de seus livros, por fim, ele conta porquê ajudou a mãe a deixar o himeneu.
A resposta foi que não.
O noticiarista lembrou das cenas da puerícia de quando um médico ia visitar sua família. Um varão com ensino superior e um jeito de se portar que atingia a todos em sua vivenda porquê uma humilhação.
“Os dentes dele eram lindos, e os nossos estavam estragados. Bastava o corpo dele para que sofrêssemos a violência”, disse. “Quando estou diante de minha mãe e meu pai, vejo que me tornei o corpo que me humilhava. Tornei-me o corpo da violência.”