Flip: João Do Rio Abordou De Babalaôs A 'amantes Do

Flip: João do Rio abordou de babalaôs a ‘amantes do Diabo’ – 08/10/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

“A religião?”, João do Rio lança aos seus leitores em “As Religiões no Rio”. “Um mysterioso sentimento, mixto de terror e de esperança, a symbolização lugubre ou contente de um poder que não temos e almejamos ter, o ignoto avassalador, o equívoco, o susto, a perversidade…”

Ao folhear os jornais, um incauto poderia até se ver num país essencialmente católico. Tolice, escreve ele. “A cidade pulula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A multiplicidade dos cultos espantar-vos-á.”

Quando fala das crenças esparramadas pelo Rio de Janeiro naquele prelúdio do século 20, o responsável talvez soe tão defasado quanto a ortografia original de sua prosa. Historiador dos mais populares em sua idade, João Paulo Barreto é um varão do seu tempo. Não está imune aos preconceitos dos seus contemporâneos com a religiosidade paralela ao status quo.

O homenageado da Flip, que começa nesta quarta e vai até domingo em Paraty, ele lançou há 120 anos esta coletânea de crônicas sobre o caleidoscópio religioso carioca.

Isso por si só já é um feito: enxergar além do domínio católico, apresentando às elites um Rio de “pagãos literários, defensores de dogmas exóticos, reveladores do porvir, amantes do Diabo, babalaôs de Lagos” —enfim, “todos os cultos, todas as crenças, todas as forças do Susto”.

Só não ignora por completo o catolicismo porque fala de frei Piazza, um exorcista que devolvia vaias de detratores com beijos, “e cada ósculo seu no ar petrificava a boca de um dos imprudentes insultadores”.

O historiógrafo também toma interesse pelas igrejas evangélicas, àquela idade formadas por linhas porquê metodistas e presbiterianos. Falou, por exemplo, da Igreja Evangélica Fluminense, até hoje em atividade. Primeira congregação no Brasil a pregar em português, foi fundada em 1858 por um escocês, Robert Reid Kalley. João o chamou de “varão rico e feliz”, disposto a trocar a ilhéu da Madeira por uma “cidade bárbara, feia, enxurrada de calor”.

O responsável se mostra pasmo com a proliferação dessa linhagem cristã. “As igrejas evangélicas abundam entre nós, pastor”, diz a um interlocutor.

Anotará quando escutar que “os evangelistas serão muito brevemente uma força vernáculo, com chefes intelectuais, dispondo de uma grande volume”, e com um deputado no Congresso Vernáculo —o que demoraria ainda três décadas. O primeio foi Guaracy Silveira, do socialista PSB, que lutou contra o ensino religioso nas escolas por temer monopólio católico na disciplina.

Emergem dos textos de João do Rio um ranço racista sobretudo contra religiões de matriz africana, populares num Brasil que havia anulado a escravidão não tinha nem duas décadas. “Ele foi um intelectual num Rio que desejava ser moderno, católico, branco. Mas não era”, diz Carolina de Castro Wanderley, que estuda o responsável em seu doutorado na UFRJ.

O sociólogo Muniz Sodré diz que João “incorporou a atmosfera preconceituosa da idade” sobre essas religiões. “Não era um racista militante ou um eugenista porquê foi Monteiro Lobato, mas nos livros dele o racismo aparece.”

“Obviamente”, frisa o responsável de “Pensar Nagô” e colunista da Folha, “não podemos julgá-lo retrospectivamente com os olhos de hoje”. Sua grande virtude foi ter publicado de perto uma veras ignorada no andejar de cima. “Ele inaugurou, de perceptível modo, o jornalismo de ir ver e ortografar. Não falou de dentro da Redação.”

A primeira secção da obra fala do “Mundo dos Feitiços”, farto no “olhar elitista de uma classe para a outra”, afirma Wanderley. O preconceito está lá, porquê quando se refere a filhas de santo do candomblé porquê “as demoníacas e as grandes farsistas da raça preta, as obcecadas e as delirantes”.

Ela lembra que o próprio noticiarista era preto, “mas tentava se enquadrar num mundo branco”. João não deixava de realçar, porém, que “esta mesma escol tem fascinação pelo ‘mandinga’, vive o buscando, apesar de no domingo ir muito vestido à Igreja Católica”.

Pouco restou daquele Rio de Janeiro testemunhado pelo responsável.

Sentado num boteco em frente ao Cais do Valongo, que serviu porquê maior porta de ingressão de escravizados, o babalaô Ivanir dos Santos aponta que João viveu perto de uma idade de catolicismo porquê religião solene. A capoeira era criminalizada, mas não eram raras as mulheres da nobreza “que iam se consultar com Juca Rosa”, o pai de santo mais publicado do século 19.

Era uma relação que se equilibrava na anfibologia e na hipocrisia, segundo o babalaô, que é doutor em história pela UFRJ.

O Valongo fica numa espaço conhecida porquê Pequena África, pela outrora concentração de sequestrados pela escravidão. Os terreiros se multiplicavam ali por valores além do místico.

“A morada de santo era o SUS do pobre”, diz Santos. Era generalidade que a população negra da classe baixa recorresse a banhos de grama para sarar moléstias. Não só ela, aliás. Ícone do samba e mãe de santo, Tia Ciata foi chamada para tratar uma ferida na perna do portanto presidente Venceslau Brás, nos anos 1910. Deu perceptível.

Tido porquê memória viva da região, Rubem Confete fala com a reportagem no Arrecadação Senado, inaugurado no núcleo carioca três anos depois o homenageado da Flip lançar “As Religiões no Rio”.

A região era “uma torre de Babel” de línguas africanas, diz. Espaços religiosos se avizinhavam às Casas de Engorda, onde o escravizado se recuperava de debilidades para ser vendido —uma placa no Valongo rememora o proclamação “vende-se governanta de leite”.

O fervor religioso registrado por João do Rio abrandou com o tempo. “O pessoal foi migrando para outros lugares”, principalmente depois o “bota-abaixo” higienista do prefeito Pereira Passos. Muitos se mudaram para a Baixada Fluminense.

Hoje, a falta de multiplicidade dos cultos por aquelas bandas espantar-vos-á.

Folha

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