Mariana Salomão Carrara sabe um tanto sobre a morte. “É um tema que eu não tiro da cabeça. Deveria tirar mais”, conta, sentada à mesa da cozinha de seu apartamento, em São Paulo.
A autora é um dos destaques da Sarau Literária Internacional de Paraty deste ano, onde dividirá a última mesa da programação com Carla Madeira e Silvana Tavano.
Em “Não Fossem as Sílabas do Sábado”, consagrado uma vez que melhor romance do ano pretérito pelo Prêmio São Paulo de Literatura, a morte despenca sobre a vida da jovem protagonista, que narra o luto ao lado de uma vizinha. Ambas se tornaram viúvas em um acidente que transformou o sábado em uma vocábulo dolorosa.
“A Árvore Mais Sozinha do Mundo”, seu lançamento mais recente, envereda por uma outra morte: a impossibilidade de viver que transformou o suicídio em epidemia entre fumicultores no extremo sul do Brasil. Formada em recta e atuante uma vez que defensora pública, Mariana usa suas férias e afastamentos pontuais para se destinar à escrita, sua vocação desde rapariga.
Talvez por isso, ela tenha o hábito de trabalhar em diferentes romances simultaneamente. Foi o caso dos dois últimos livros: enquanto pesquisava sobre o suicídio durante a escrita de “Sábado”, se deparou com uma notícia da BBC Brasil que narrava a “bomba-relógio” de suicídios no Rio Grande do Sul.
“Essa epidemia de uma coisa que não é contagiosa me interessou, primeiro uma vez que ser humano e logo uma vez que escritora. Pensei: essa é uma história que pode ser contada, por mais que seja desafiadora, dissemelhante de tudo que eu já fiz.”
Ainda que a tendência proeminente na literatura seja a escrita fincada na identidade de quem escreve, Mariana não tem pânico de se aventurar na imaginação.
Em “Se Deus me Invocar Não Vou”, assume a voz de Maria Carmem, uma rapariga de 11 anos que afoga a solidão e o pânico da morte na esperança de se tornar escritora. Em “É Sempre a Hora da Nossa Morte Amém”, se transforma na septuagenária Aurora, uma mulher amnésica que, a cada capítulo, rememora as muitas mortes da filha Camila.
Ambos figuraram entre os dez indicados ao Prêmio Jabuti, em 2020 e 2022, e já mostravam a habilidade da escritora em se metamorfosear em vozes narrativas distantes da sua —mesmo que a morte seja sempre uma nuvem pairando sobre sua cabeça.
Talvez menos uma vez que uma nuvem e mais uma vez que um ar condicionado mal instalado ou um tijolo despencado de repente. “Sempre que eu vou transpor de lar, eu penso na morte”, diz Carrara, acrescentando não ter nenhuma experiência pessoal que justifique essa impaciência. Reconhece, mas, que a tranquilidade não faz segmento do seu caráter.
“É muito bom olvidar que a gente morre. É uma felicidade incrível, mas você só percebe essa felicidade depois que lembrou que morre. Não é uma coisa com que eu consigo viver, essa tranquilidade. Por ser tão onipresente na minha vida, esse tema acaba indo para os livros.”
Em seus 38 anos de vida, a escritora paulista nunca teve grande contato com o Sul, mas isso não foi problema na hora de ortografar “A Árvore Mais Sozinha do Mundo” em primeira pessoa. E é com muito zelo que encarna a embocadura gaúcha.
“Fiquei cinco anos pesquisando. Vi muitos vídeos na internet, principalmente de adolescentes mostrando o dia a dia na plantação. Li teses de mestrado sobre ergonomia da colheita e tudo mais.”
Quando finalmente pôde visitar uma família de plantadores de fumo, a autora sentiu o cansaço daquele cotidiano só de ouvir os relatos de quem passa Natal e Ano-Novo sem folga na lavoura. A trama se desenrola na lar de Carlos e Guerlinda, parelha que vive com três filhos em uma pequena rancho de tabaco em um quina remoto do Sul do Brasil.
As estradas não são asfaltadas, e a escola rústico mais próxima fica inacessível na idade de chuvas. As crianças crescem envenenadas pelo agrotóxico e pela nicotina, plantando e colhendo fumo ao lado de uma mãe envelhecida pela rotina e um pai gravemente deprimido pela exposição aos venenos e pelo endividamento metódico.
O lastro na veras é palpável, mas a ficção toma conta do romance na voz narrativa, que se alterna entre quatro objetos que testemunham a vida da família, tateando o desespero da situação sem dominá-la por completo.
“Logo que eu pensei na história, decidi que ela seria narrada dessa forma. Sinto que os objetos sabem muito sobre nós. Eles nos veem quando não estamos procurando impressionar ou enganar ninguém, com muita autenticidade”, ela conta, percorrendo o olhar pelo próprio apartamento, pleno de objetos coloridos que não falam tão elevado quanto latem os três cachorros que passeiam entre seus pés durante a conversa.
No livro, um velho espelho português segreda com impudência luso o desenrolar da vida doméstica. Uma caminhonete Rústico lembra, uma vez que uma avó afetuosa, o tempo em que a família tinha virilidade para passear pelas feiras de cidades vizinhas. Uma cobertura de proteção usada nas plantações para manusear agrotóxicos assume a voz infantil de quem, tão inocentemente, precisa sentir a pele chamejar com o sol e o veneno.
Do lado de fora, no jardim, a árvore observa a miséria se apossando daquela família, que conhece um paixão humano e inconcebível aos seres inanimados que os espiam. Plantada em solo envenenado, a árvore solitária que dá nome ao livro ecoa as vozes das florestas que queimam e caem Brasil afora, vítimas da catástrofe ambiental.
Quando escreveu o livro, Mariana ainda não sabia das chuvas que iriam assolar o Rio Grande do Sul em maio deste ano, mas descreveu um pouco profeticamente uma situação que viria a prejudicar a vida de tantas famílias.
“Eu valorizo muito o manobra de empatia envolvido na ficção. Gerar uma personagem do zero e sentir essa vida tão diversa da sua. Normalmente, são vidas cujos protagonistas reais não estão escrevendo livros. Eles estão ali, consumidos pela sobrevivência. São vozes que precisam ser encontradas.”