Ninguém precisou mencionar eleições para que Mame-Fatou Niang, professora franco-senegalesa responsável pela curadoria internacional da Flup, começasse a falar em Donald Trump.
Finalmente, era quarta-feira (6) de manhã e a notícia de sua recondução à presidência americana estava em todos os lugares. Niang estava prestes a redigir a seus alunos —ela dá aulas numa universidade da Pensilvânia— para proferir que o sentimento que a tomava não era de resignação, mas de corroboração.
“Quando você não aceita a situação, não percebe que há alguma coisa quebrado que precisa ser consertado”, diz ela, na entrevista por vídeo. “Ter Trump ali é extremamente problemático, mas eleição é uma vez a cada quatro anos. Há tanta vida política acontecendo na sua cidade, no seu bairro. É por isso que você faz coisas porquê a Flup.”
Se parece que a professora mudou bruscamente de matéria, é preciso olhar com mais atenção ao que ela e outras quatro curadoras brasileiras estão preparando para a Flup, a Sarau Literária das Periferias, que começa sua programação gratuita nesta segunda-feira no Rio de Janeiro.
Com espinha dorsal na homenagem a Beatriz Promanação, intelectual que defendeu uma “história feita por mãos negras”, o programa apresenta possante predominância de mulheres negras —elas são mais de 90% dos nomes confirmados nesta edição.
Entre elas, há expoentes da literatura internacional —porquê a britânica Bernardine Evaristo, a primeira mulher preta a lucrar o Booker, e a francesa Marie NDiaye, vencedora do Goncourt— e vernáculo —porquê Conceição Evaristo e Luciany Aparecida. Mas ali se revela uma concepção mais ampla de sarau literária.
Primeiro, pelo perfil da intelectualidade reunida, que inclui a ex-ministra francesa Christiane Taubira, que comandou a pasta da Justiça no governo François Hollande, a socióloga nigeriana Oyeronke Oyewumi, do referencial “A Invenção das Mulheres”, e a líder indígena Elisa Loncón, professora mapuche que presidiu a Constituinte do Chile.
Mas também por um traço histórico da Flup de entender que um evento literário é também slam —a trova falada de embocadura próxima ao rap— , música e dança. As mesas literárias se revezam com mesma relevância no programa com tambor de crioula, guerra de passinho, Ilê Aiyê e Dona Onete.
É uma risca curatorial que faz pensar o que pode ser um festival literário, desafiando a velha teoria da torre de marfim em que intelectuais iluminados discorrem sobre o mundo, à secção dele.
Niang retoma a “figura-mãe” de Beatriz Promanação. “Agora que ela está sendo estudada em universidades e será traduzida pelo mundo, é importante que não se mantenha só porquê objeto de um festival literário de classe subida. Porque as lições dela eram lições de vida, do dia a dia, de uma mulher normal falando para outras.”
A jornalista Bianca Santana, que tem atuado porquê curadora em festivais porquê o de Itabira e do Museu Judaico em São Paulo, lembra porquê ficou impressionada em sua primeira ida à Flup, quando enxergou “a favela num festival literário”.
Escolhas porquê a da sarau deste ano, com tamanha prevalência de mulheres negras, para ela revelam uma intenção deliberada de questionar o que era universal nas letras até agora. “Já foram feitos tantos festivais só com homens brancos, e isso era narrado porquê alguma coisa proveniente, porquê se só eles fizessem boa literatura. Mesmo que uma opção dessas seja inconsciente, é política.”
Santana aponta que a Flip, pioneira entre os festivais literários a partir de 2003, era no prelúdios uma sarau de “senhoras ricas aposentadas”, uma classe média subida que gozava do “privilégio do privilégio”.
As coisas mudaram, muito por pressão de movimentos sociais inconformados, e uma inflexão veio com a edição que, sob curadoria de Joselia Aguiar em 2017, aumentou a presença negra e deu destaque a uma mesa com Ana Maria Gonçalves, de “Um Defeito de Cor”, e uma Conceição Evaristo longe do vasto reconhecimento de público que tem hoje. Essa viradela, diz Santana, veio também porque outros eventos porquê a própria Flup já proliferavam.
Aguiar é defensora de que festivais possam “passar riscos e produzir outro tipo de pensamento curatorial”. “As festas podem escolher reproduzir o que há nas livrarias ou fazer trabalhos de pesquisa, de novidades e propostas que não estão sendo vistas no mercado.”
“Existem modelos interessantíssimos de sarau literária, não precisa ser uma taxa jornalística”, continua Aguiar, se referindo a assuntos ligados aos acontecimentos da hora. Uma vez que exemplo, ela cita uma feira europeia chamada Babel que a cada ano escolhe um tema —”na vez em que estive lá foi o luto, o termo das coisas”.
“Pode ser uma taxa de lançamentos, sim, ou buscar outras questões que têm a ver com a literatura e com o mundo, mas que não estão sendo discutidas nos jornais. Só que a prensa precisa de lide, e uma sarau literária sem lide é ruim para ter uma cobertura bacana.”
A cena dos festivais dissemina cada vez mais eventos pelo Brasil —de Araxá a Petrópolis, de Pomerode a Catadupa, no Recôncavo Baiano, muitos deles evocando o “fli” da sarau de Paraty. Alguns refletindo gostos mais comuns, lembrando o valor que há em promover o encontro de autores com seus leitores, outros buscando diferenciais.
Ana Lima Cecilio, curadora da última Flip e que será reconduzida para a edição de 2025, tem reforçado que privilegia um “olhar de livreira”, buscando o “ponto de contato entre o que se produz e o que os leitores querem”.
A figura do responsável homenageado, diz ela, serve para mostrar diretrizes —neste ano, João do Rio deu a senha para temas porquê “a rua, a sarau, a resistência”. Mas, segundo Cecilio, “não é saudável fechar a Flip num tema”. “É bom amplificar os assuntos possíveis, assim se diversifica o público e as editoras.”
Ela afirma que sua proposta não é refletir o mercado, ainda que reconheça porquê o evento alimenta e é mantido por ele, “mas os interesses fundamentais para compreender o mundo louco em que vivemos”.
Quando o repórter comenta com Mame-Fatou Niang, curadora da Flup, que uma sarau literária pode ser vista pelo público porquê uma atividade superficial demais para descrever porquê atuação política, ela tem uma resposta na ponta da língua.
“Pense nos Estados Unidos. Na Flórida, estão banindo livros. Esse é um país em que você pode andejar com uma AK-47, mas as pessoas têm pânico de um livro. Não palato de usar a vocábulo arma, mas o livro é uma utensílio que tornamos mais eficiente permitindo a vocábulo circundar de um país a outro.”
“Se você aceita, se para de lutar e sonhar, logo quem persegue você venceu”, continua. “E é isso que a literatura faz, ela imagina possibilidades, imagina um porvir. Pode ser até um porvir pior que hoje. Mas, ei, vamos criá-lo.”