“Grande Sertão: Veredas” é o Monte Everest do mundo da tradução. Uma vez que verter para outro linguagem um romance experimental de 600 páginas sem repartição por capítulos, narrado por um jagunço que conta uma poema no sertão de Minas Gerais com neologismos, onomatopeias, paranomásias, aliterações e assonâncias?
Foi essa a pergunta que a australiana Alison Entrekin se fez em 2014, quando aceitou tocar um projeto para trasladar o clássico de Guimarães Rosa para o inglês.
Ela sabia que o trabalho seria vigoroso, mas não imaginou que duraria uma dezena.
No termo de 2023, entregou uma primeira versão a seu agente literário, encarregado de apresentá-la ao mercado editorial. O livro foi arrematado em um leilão pela editora americana Simon & Schuster em meados de 2024 e tem publicação prevista para 2026.
Promete ser um ocorrência: a outra única edição em inglês de “Grande Sertão”, lançada em 1963, não passou da primeira tiragem e ficou conhecida uma vez que uma versão desidratada que não está à profundeza do original.
O próprio Guimarães Rosa chegou a se queixar, em trocas de cartas com seu tradutor para o germânico, de que o texto não capturava a singularidade de sua obra.
Se um dos problemas apontados para o fracasso daquela era foi o conhecimento restringido do português da tradutora americana Harriet de Onís, que acabou largando o trabalho no meio do caminho, desta vez a situação não podia ser mais distinta.
Entrekin vive no Brasil desde 1996, quando, vindo de Perth, na costa australiana, desembarcou em Santos (SP), a cidade-natal do marido.
Na era em que aceitou a proposta de preparar uma versão em inglês de “Grande Sertão”, que chegou pela dependência que representava os herdeiros do redactor, já tinha traduzido “Budapeste”, de Chico Buarque, e trabalhava em uma obra de Daniel Galera.
Em uma dezena, foi completamente absorvida pelo universo roseano. A discussão que teve recentemente com a editora que arrematou a tradução para definir o título dá uma teoria: foram quatro longos meses de chamadas de vídeo, reuniões e e-mails para chegar a “Vastlands: The Crossing”.
“Você não imagina quanto tempo a gente gastou debatendo esses dois pontos no título”, conta Entrekin à reportagem da BBC News Brasil em um moca em São Paulo.
Inicialmente, os editores argumentaram que os dois pontos causariam estranhamento. Mas a teoria era justamente essa, rebateu a tradutora.
“Quando o livro saiu em português, também tinha esse estranhamento. Hoje não tem mais porque os leitores tiveram sete décadas pra se afazer com os dois pontos.”
Ela também reparou que, nas trocas de cartas entre o redactor e a tradutora americana da primeira versão, no meio de um grande vai e vem de sugestões de combinações para o título, a única manente eram os dois pontos. Guimarães Rosa provavelmente era apegado aos dois pontos, pensou ela. Melhor deixar.
Dez anos traduzindo um livro
As correspondências do responsável foram segmento do arsenal de fontes que Entrekin usou em sua “travessia”, uma vez que ela labareda, pegando emprestada a última vocábulo de Grande Sertão.
Trabalhos uma vez que “O Léxico de Guimarães Rosa”, que reúne praticamente todos os neologismos de sua obra, “Universo e Vocabulário do Grande Sertão” e “Para Ler Grande Sertão: Veredas” ajudaram-na a velejar, além de dezenas de dicionários, glossários e pesquisas de mestrado e de doutorado.
A “riqueza sátira” ainda não existia na era de Harriet de Onís, razão pela qual ela releva as críticas mais cruéis ao trabalho da tradutora e de James Taylor, a quem coube concluir a tradução no início dos anos 1960.
Para Entrekin, foi um instrumento fundamental na procura por soluções para os neologismos que singularizam a obra de Guimarães Rosa, que a ajudou a desvendar as ferramentas que o responsável usava em seu manente treino de recriação da linguagem.
Uma delas eram as “palavras-valise”, a junção de duas palavras conhecidas para dar à luz uma terceira (uma vez que “turbulindo”, por exemplo, que vem de “turbilhão” e “bulir”; ou “constragar”, da união de “constringir” e “tragar”).
Rosa também gostava de usar a sufixação, uma vez que em “prostitutriz”, combinação de prostituta com o sufixo “-triz”, de “atriz”, “prostituta”.
Recorria com frequência às onomatopeias (“burumdum”, que remete ao fragor de um corpo caindo no soalho, ou “delém”, do trovar dos sinos) e criava neologismos por semelhança, com uma vocábulo novidade que lembra outra que já existe (“demorão”, que vem de “temporão”; “sofreúdo”, criado a partir da “manteúdo”, ou “pormiúdo”, em semelhança a “pormenor”).
A partir desse planta, ela criou portanto o próprio laboratório literário, desmembrando, por exemplo, palavras-valise para entender suas “árvores genealógicas”, e, na sequência, experimentando com sufixos, sinônimos e versões arcaicas de palavras em inglês até encontrar uma combinação que “pegasse”.
“É folgar de Frankenstein”, ela descreveu em uma palestra no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB – USP).
Foi mal “turbulindo” virou “awhirmoil”, uma palavra-valise que une “whir” (zumbir), “awhirl” (girando) e “turmoil” (turbilhão, conflito, tumulto), “prostitutriz” foi traduzida uma vez que “prostitutress” (“prostitute” com o sufixo “ress”) e “uivando lobúm” se transformou em “howling woliferously” (semelhança com “vociferously”, vociferantemente, a partir da vocábulo “wolf”, lobo).
Todo esse processo de excisões, enxertos e suturas significava, simples, que o trabalho ficava mais lento.
Profissionais traduzem, em média, um tanto entre 1,5 milénio e 2 milénio vocábulos por dia. “Eu ficava feliz quando fazia 500”, ela conta.
Nessa rotina, dezenas de palavras iam ficando pelo caminho. Nomes do Diabo (em uma sequência famosa o protagonista Riobaldo enumera 23), descrições de flora e fauna e topônimos (lugares geográficos), por exemplo, ela deixava em português no meio do texto uma vez que uma marcação para voltar depois.
“E essas palavras esdrúxulas que o Ribaldo fala e que não têm significado, não são dicionarizadas e na verdade são marcas de oralidade”, acrescenta.
A estratégia era olhar para a obra de forma sistêmica, para dar mais fluidez ao trabalho. Caso contrário, ia permanecer tropeçando nas expressões menos óbvias.
Muitas dessas palavras estão anotadas em um calendário de natalício que está pendurado na parede em frente à escrivaninha da tradutora, que também virou repositório de uma lista de inspirações, termos em inglês que lhe ocorriam nas mais diversas ocasiões e que ela achava que poderiam ser úteis em qualquer momento da travessia.
“Eu tenho uma lista de ‘conjunções esdrúxulas’, por exemplo, outra de palavras arcaicas… Vasculhava dicionários de palavras arcaicas em inglês para ver se tinha alguma gracinha ali que merecia ser lembrada depois”, ela conta.
Travessia
Por dez anos, de segunda a sexta, a australiana acordou cedo, levou a filha para a escola, voltou para morada e sentou na frente do computador para reconstruir em inglês o sertão de Minas Gerais.
A teoria inicial era fazer o trabalho caber em três anos, que era o período que o Itaú Cultural, que entrou uma vez que apoiador do projeto, concordou em pagar-lhe um salário.
O prazo acabou sendo expandido, e Entrekin ficou mergulhada nessa rotina de reinvenção da linguagem até a pandemia, em 2020, quando o prazo posto pelos incentivadores se esgotou.
Mas ainda havia um terço da obra a ser traduzida, e a australiana decidiu portanto trabalhar por conta própria: “Não concebia largar naquele momento, já tendo feito tanta coisa.”
E tinha sido muito. Em vez, por exemplo, de transpor a história de Riobaldo e Diadorim para um universo mais próximo do outback australiano ou do sul dos Estados Unidos, em um processo publicado na tradução uma vez que “domesticação”, Entrekin tentou “levar o leitor para o mundo do livro”, a chamada “estrangeirização”.
Para fazer jus à “robustez poética” da obra, por vezes ela também intercambiou as ferramentas roseanas, traduzindo um neologismo que em português era uma palavra-valise, por exemplo, usando uma sufixação.
“Um neologismo pode ser traduzido de várias maneiras, é uma questão de originalidade. Fiquei experimentando até chegar num resultado que me agradasse, mas outra pessoa poderia fazer outra coisa”, ela diz à BBC News Brasil.
No termo, criou uma novidade língua, um inglês a partir do português, uma vez que ela define.
Em uma maratona de aulas que ministrou uma vez que convidada e webinars no termo de 2024, chegou a ser parabenizada por trasladar um livro “intraduzível”.
Não é mal ela enxerga “Grande Sertão”: “Acho um livro altamente ‘traduzível'”, diz, dando risada. “É trabalhoso, mas não é intraduzível.”
O roupa de Guimarães Rosa folgar com as palavras dá liberdade ao tradutor de fazer o mesmo, ela reflete, desde que “dentro das regras do jogo”.
Isso de certa forma aparece nas cartas que o responsável trocou com o primeiro tradutor para o italiano, Edoardo Bizzarri. Em uma nota de congratulação pela tradução de “Duelo”, um dos contos de “Sagarana”, ele labareda o texto de “nosso”.
“Ele viu que o italiano entendeu a folgança, que podia dar mais liberdade para ele ir fundo na recriação da obra dele”, comenta.
Ela também pegou palato. Quer agora trasladar “Corpo de Dança”, lançado no mesmo ano de “Grande Sertão: Veredas”, o único livro de Guimarães Rosa ainda não vertido para o inglês.
No momento, a tradutora está na revisão final de “Vastlands: The Crossing”.
“E essa revisão vai até quando, até arrancarem o livro da sua mão?”, pergunta a reportagem, agarrando um livro imaginário na frente da tradutora.
“Mais uma menos isso”, responde, fazendo portanto uma folgança com a vocábulo possivelmente mais desafiadora da obra: “Deixa eu só rever ‘Nonada’!”, diz, dando risada, enquanto puxa o livro imaginário de volta em sua direção.
Em uma dezena, ela foi e voltou várias vezes nela, uma aglutinação de “non” e “zero”, que remete a uma versão de “não é zero” da oralidade sertaneja, que abre Grande Sertão: Veredas e que é um símbolo para qualquer leitor de Guimarães Rosa.
Nos últimos meses, por onde Alison Entrekin passou para falar sobre sua travessia, alguém perguntou uma vez que “Nonada” tinha ficado em inglês.
“É surpresa”, ela rebate. Vai permanecer para quando transpor o livro.