Pálido, com caninos afiados, hálito pestilencial, de postura aristocrática e sedutora. Assim é o vampiro —um dos monstros mais conhecidos e adaptados ao século 21— segundo os biólogos Martha Argel e Humberto Moura Neto, organizadores da obra “O Vampiro Antes de Drácula”, relançada pela Aleph.
O livro reúne 14 contos sobre vampiros escritos no século 19, e aponta “O Vampiro” de John William Polidori uma vez que ponto de partida desse tipo de prosa. No narrativa de 1819, Lord Ruthven tem um rosto notável, ao mesmo tempo belo e cadavérico, preenchido por olhos cinzentos e mortiços.
Na história, o cavalheiro Aubrey é quem primeiro percebe o caráter duvidoso do lorde, que se alimenta das mulheres que atrai. Ele tenta denunciar o transcendente, mas as pessoas em seu entorno acham que está louco. No término, o vampiro se moradia com a mana de Aubrey e some depois de sugar seu sangue e matá-la.
Apesar de oriente não ser o primeiro texto sobre vampiros (foi um poema de Heinrich August Ossenfelder, publicado em 1748), Lord Ruthven inaugurou a figura do vilão aristocrático, sedutor e sobrenatural. Décadas depois, Bram Stoker estabeleceu o vampiro na cultura popular com o clássico “Drácula” (1897).
Mas o mito do vampiro é pré-literário. No século 17, o meio e o leste da Europa já falavam em figuras repugnantes e cadavéricas. Uma vez que é indicado em “O Vampiro Antes de Drácula”, a mito surgiu principalmente pela falta de conhecimento científico acerca do processo de dissolução cadavérica.
As pessoas temiam a fisionomia intacta que alguns mortos tinham quando eram exumados, o que hoje já se entende por pretexto da ciência: cadáveres podem ser preservados por solos ácidos ou de baixa temperatura, cabelos e unhas parecem crescer no pós-morte pelo encolhimento da pele e a retenção de gases no corpo gera inchaço e uma fisionomia saudável.
“Um monstro nunca é o que parece, ele nos instiga a irmos além e a decifrá-lo”, diz Adriano Messias, repórter e doutor em informação e semiótica. Ele aponta que as figuras monstruosas que aparecem na literatura e no cinema são arautos de sua era e falam diretamente a nossos medos e anseios.
“O monstro é um tanto que quer nos mostrar alguma coisa. Não por possibilidade, amamos zumbis nessa era de Antropoceno e descaso com o outro”, afirma o responsável de “Todos os Monstros da Terreno”, livro vencedor do prêmio Jabuti em 2017.
Não existe o vampiro, mas vampiros, pois ele tem se ajustado a diferentes momentos culturais. Monstros são sintomas da cultura e refletem os desejos, frustrações e delírios disfarçados sob as regras sociais.
“Jovens dos anos 1930 saíram apavorados dos cinemas posteriormente assistirem ao “Drácula” de Tod Browning. Os livros de Anne Rice [autora de “Entrevista com o Vampiro”] povoaram os anos 1990 com vampiros eróticos e, pouco depois, Stephenie Meyer [autora da série “Crepúsculo”] diminuiu muito a libido vampiresca com seus mordedores eruditos, reprimidos e castrados”, conta Messias.
O pesquisador afirma que, em era de “streaming de mais e de leitura de menos”, o audiovisual guia muito das tendências culturais. Em meio a essa demanda erótica se popularizam os “monster romances” (romances de monstros).
Essa tendência editorial apresenta humanos em relações românticas com figuras assustadoras, com pares românticos inusitados. “Kissing the Coronavirus” (ou “beijando o coronavírus”) de M.J. Edwards, conta a história de uma observador que se apaixona pela Covid-19; e “Prenha de um Lobisomem” de Bell J. Rodrigues, é o narrativa de uma mulher que espera o fruto de um varão muito incomum.
Mas essas histórias não devem ser confundidas com os “romances sobre monstros”, que compõem o gênero literário de ficção com personagens monstruosos. A diferença se dá por sua espaço no imaginário dos leitores: o nicho editorial jovem não parece tão eterno quanto os clássicos de Mary Shelley e H.P. Lovecraft, por exemplo.
Ambos os nichos literários, porém, podem compartilhar o clima de erotismo. “Pegue um romance gótico do século 19 para ler e, provavelmente, verá muito do que hoje se labareda, de forma quase envergonhada, de literatura hot”, conta Messias. “Um bom leitor sabe que ‘Drácula’ está recheado de referências sexuais.”
Para o repórter, no mundo fluido em que estamos, ter monstros uma vez que pares românticos é sintoma da procura por singularidade e cumplicidade nas relações afetivas.