Identitários E Conservadores Censuram A Literatura 25/06/2024 Wilson

Identitários e conservadores censuram a literatura – 25/06/2024 – Wilson Gomes

Celebridades Cultura

“Eu sou em prol da suspensão, porque não é perceptível o ensinamento desse livro”, afirmou uma jovem mãe mineira, ao ser indagada sobre o que achava de o “Menino Marrom”, de Ziraldo, ter tido o seu uso didático temporariamente suspenso em Mentor Lafaiete, em Minas Gerais.

A fé que se repete na voz de um jovem pai, que acrescenta que é preciso estar alerta aos livros escolares, sim, e já tinha até planejado ir à Secretaria de Instrução “com relação a alguns livros” de leitura obrigatória. Notem o plural.

Fatos dessa natureza têm recebido enorme cobertura da mídia e inundado o debate público pátrio a partir dos ambientes digitais. Não é evidente para mim se foi a cobertura que aumentou ou se realmente houve um incremento nas ações de pais e autoridades para restringir o chegada de crianças e jovens a determinados livros. De todo modo, é notável porquê esses episódios continuam a se repetir.

Há quem salte para grandes conclusões, atribuindo ao progresso do bolsonarismo uma vaga de moralismo inquisitorial e uma temporada de caça a livros e a outras bruxarias artísticas e literárias no país. E há quem diga claramente que a paixão por repreender se restringe a obras antirracistas ou com temáticas relacionadas à cultura africana no Brasil. As evidências, todavia, não autorizam saltos tão grandes.

Primeiro, se é verdade que a ultradireita acredita que o mal pode residir em livros e representações artísticas, identitários de esquerda compartilham o mesmo temor e idêntica vontade de proibir, cancelar e punir. A única diferença real entre as duas posições reside na definição do que exatamente constitui o mal.

Para identitários, livros ofendem minorias, oferecem “gatilhos” que acionam sofrimentos em certas pessoas, induzem ao racismo, à misoginia, à homofobia e à transfobia e colonizam o pensamento. Para os ultraconservadores, a literatura ensina ideias religiosas falsas, induz à homossexualidade, faz doutrinação ideológica, promove a ideologia de gênero e o comunismo, além de expor crianças à violência e ao sexo.

Em ambos os casos, há a fé geral de que as crianças, quando não todas as pessoas, precisam ser protegidas dos livros. E, se provável, que se deem alguns passos mais, que variam desde a reescrita “politicamente correta” —alô, Monteiro Lobato— ou “de convénio com a sã ensinamento” de obras literárias, até a geração de listas de livros e autores proibidos e a emissão de condenações públicas contra autores, eventualmente até enquadrando-os em qualquer tipo penal.

A rapidez com que se passa do julgamento moral de alguém que se sente ofendido —e o “sentir-se ofendido” é considerado motivo suficiente para a decisão de que um livro não presta— até o pedido de increpação e punição ao responsável é a mesma nos dois grupos. O identitário grita “racismo religioso” ou “transfobia” com a mesma presteza com que o conservador conclui que “não é perceptível o ensinamento desse livro”.

Em segundo lugar, ao examinar as razões enunciadas por quem considera que a obra faz mal, notamos que a increpação é invariavelmente vista porquê um ato de paixão e zelo, pois o censor está sempre protegendo alguém vulnerável —crianças, jovens, membros de minorias, pessoas ignorantes, a volume ingênua.

Na bibliografia sobre o tema, já se constatou há anos que três variáveis são importantes —o quão protetora é a pessoa que pede por increpação, o quão vulnerável ela julga ser a pessoa ou grupo que quer proteger e a magnitude do mal que ela julga ver no objeto que deseja repreender.

A estimativa do nível do mal depende de muitos fatores, inclusive do proporção de conhecimento da obra julgada. Grandes leitores raramente têm terror de livros. Quem joga games eletrônicos não vê os danos que os não jogadores imaginam. Os extremamente protetores tendem a querer repreender tudo —celulares, games, televisão, YouTube, livros—, enquanto os que acham que todo mundo sabe se virar no mundo não querem repreender zero.

Quem considera os outros muito ingênuos, estúpidos ou influenciáveis fica atormentado com o que eles leem ou veem. Quem acha que todo mundo é mais ou menos porquê ele acredita que todos são suficientemente sagazes para driblar manipulações.

Curiosamente, as mesmas pessoas que consideram patéticas e absurdas as alegações de que o livro de Ziraldo incentivaria a violência, que é um traje, consideram altamente sofisticado confiar que smartphones e plataformas digitais vão tornar seus filhos estúpidos, que games os tornarão violentos, que a televisão… Ah, desculpem, as crianças não veem mais televisão. Deve ser por isso que estamos melhores.


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Folha

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