Sally Rooney não fala de paixão (e de sexo) sem falar de poder. “Intermezzo”, seu quarto romance, que chega às livrarias nesta terça-feira (24), continua nessa estrada pavimentada pelos três trabalhos anteriores.
Uma vez que “Conversas entre Amigos”, de 2017, “Pessoas Normais”, de 2018, e “Belo Mundo, Onde Você Está?”, de 2021, “Intermezzo” também fala sobre paixão. Mas não só. O romance é centrado na relação dos irmãos Peter e Ivan Koubek, de 32 e 22 anos, que acabaram de perder o pai.
Peter é um legisperito enamorado por duas mulheres, Naomi, uma camgirl de 22 anos, e Sylvia, um paixão de juventude que terminou com ele depois um acidente que a impede de fazer sexo.
Ivan, um ex-incel, ex-gênio do xadrez, que vive quebrado entre freelas de estudo de dados e delivery de bicicleta, se apaixona por Margaret, uma mulher de 36 anos que ele conhece num meio cultural no interno da Irlanda.
Os irmãos vagam pelo luto da morte do pai e, porquê fazem os enlutados, vivem uma existência pendular entre decisões frias e burocráticas e atitudes de difícil explicação além do desespero de fazer a tristeza parar por um minuto.
Entre rótulos de “primeira grande escritora millennial” e autora de young adult, Rooney se propõe a ortografar sobre grandes questões.
Zero é um pormenor geracional pitoresco, tudo é evidência de uma economia precarizada e de relações sociais corroídas. A crise imobiliária entra em cena com personagens que vivem em ocupações urbanas, caso da precarizada Naomi. A jovem vende nudes na internet para homens que comentam emojis de pêssego e três gotinhas nas suas selfies do Instagram. Mas ela não se porta porquê vítima.
Mais do que só pinceladas de luta de classe, porquê críticos da autora gostam de acusar, são esses aspectos que posicionam os personagens em relação uns aos outros no tabuleiro.
O paixão é moeda e função porque os personagens são pobres, ricos, homens e mulheres, desiguais, hierarquizados. Longe de ser um descaramento da secção de Rooney –o paixão não é menos paixão por estar a serviço.
Há momentos em que a pieguice, ou o moralismo, imperam. Ivan, embora multifacetado, tem um solilóquio interno explícito demais sobre ter sido contra assentos reservados para grávidas –foi uma escolha delas procriar, ele diz. Depois de se enamorar por Margaret, ele cede, sorrindo, seu lugar no ônibus a uma gestante. Parece que Rooney encontrou a trato para os redpills.
Em uma cena de sexo entre Peter e Naomi, ela diz que ele pode fazer o que quiser com ela. Ele embarca, mas responde que tem 32 anos e que não é porquê a geração dela, que cospe na boca uns dos outros e se estrangula. “Eu sou normal”, ele diz.
Uma vez que é praxe no mundinho Sally Rooney, não acontece muita coisa. O que move o livro são essas relações entre os personagens –e o buraco preto entre seus pensamentos e suas ações.
É nesse espaço que “Intermezzo” se move com liberdade. O livro visitante, na narração em terceira pessoa, o ponto de vista de Peter, Ivan e Margaret em fluxo de pensamento confuso e desordenado.
O primeiro capítulo, narrado do ponto de vista de Peter, começa no funeral do pai. Peter pensa na roupa Ivan, se indaga onde ele teria comprado um terno tão horroroso, um brechó de quinta talvez? Mas logo descobrimos que não víamos o funeral, mas uma memória dele. Peter estava mesmo era vagando por Dublin, rumo à ocupação onde vive Naomi, “do apartamento que não é um apartamento, da mansão que não é uma mansão”.
Essa linguagem que se desdobra em camadas, o enredo que se descobre aos poucos, a romaria urbana em Dublin joga o leitor no pescoço de “Ulisses” de James Joyce. Foi a autora quem deixou as pistas a quem quisesse pegar.
Frases da obra pipocam ao longo de “Intermezzo” e, em 2022, ela fez uma palestra, transcrita na revista Paris Review, sobre “Ulisses” e a implosão do romance porquê forma. O grande ataque de Joyce ao romance, ela diz, é a fidelidade à falta de forma da experiência da vida. Uma vez que, logo, ortografar um romance?
Depois de muito rivalizar com a forma nos seus últimos trabalhos e até com a teoria da arte num mundo em ruínas, Rooney vislumbra um caminho em “Intermezzo”. O título, aliás, antecipa eventos –um intermezzo, no xadrez, é um lance inesperado que muda o rumo do jogo.
Rooney joga, no livro, questões sobre nume, felicidade, onde está a venustidade da vida, se é ético ter uma existência bela. Coisas que ganham o corpo que a maturidade da própria autora pode oferecer –e que os leitores podem acessar.
São propostas cabeçudas para uma autora que vende milhões de cópias, tem suas obras transformadas em minisséries e cujos lançamentos são acontecimentos midiáticos, com food trucks temáticos e distribuição de bucket hats.
Agora, em um livro que começa com uma título de Wittgenstein, flerta com Joyce e abraça teoria do xadrez –o termo do caótico primeiro capítulo assusta com uma notação estratégica sobre uma início de peão agressiva– Rooney pode parecer mais complicada do que seu público aguenta.
Mas estamos todos amadurecendo –e a autora não nos subestima.