“Não acho que a literatura tenha que tratar desses temas. Mas eu perdi mais pessoas e coisas do que ganhei. Escrevo para tentar nomear certos sentimentos relacionados ao fracasso que é a nossa existência. Meu vocabulário se desenvolveu a partir disso.”
Foi logo que terminou a entrevista com a paulistana Lilian Sais. Estrear pelo término é proposital —se tem um tanto que perpassa os livros da autora é aquilo que acaba. Em “O Funeral da Baleia”, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, elabora a perda de sua mãe. Na plaquete “Vocábulo Nenhuma”, procura se reorientar depois da morte do pai. Em “A Cabeça Boa”, seu lançamento mais recente, perde-se o soalho.
“Vocábulo Nenhuma” e a “A Cabeça Boa” são secção de um projeto maior, a “tetralogia da perda”, ao lado dos ainda inéditos “As Regras”, que sairá pela editora DBA, e “O Quotidiano da Lar Novidade”, pela Macondo. Publicada por diferentes casas, Sais tem sua obra cada vez mais reconhecida, tanto que se prepara para ir à Flip —é uma das autoras confirmadas da próxima edição.
“Para ‘A Cabeça Boa’, queria uma narrativa em cacos, para um mundo em cacos”, diz Sais, que buscou essa representação em uma escrita fragmentada e cenas absurdas. Ainda que pareçam ficção, algumas são reais. A autora começou a grafar o livro, inclusive, a partir de diálogos saídos diretamente de seu WhatsApp.
A teoria era reunir retalhos da veras e escalonar o estranho a cada página. Uma enfermeira tenta pegar uma mesma veia 16 vezes, uma partida de tênis acontece dentro de um banheiro, éguas se transformam em gelo, personagens se revelam fantasmas.
Pouco é explicado: ao palato da autora, a narrativa é enxurrada de lacunas. Uma vez que leitora, gosta de ser convidada a preenchê-las, e por isso abriu espaço para indeterminações no romance —um vilarejo sem nome, numa fronteira entre zero e lugar nenhum, com um trem que não se sabe para onde leva, e ainda narrado em segunda pessoa, o mais indefinível dos narradores.
“Queria que fosse uma experiência de leitura, ensejo a interpretações. Há quem diga que o livro fala da fronteira entre a vida e a morte, entre a loucura e a sanidade. São muitas leituras possíveis.”
Embora o que mais goste no processo seja reescrever —passou por oito versões até chegar à forma final do livro—, o título veio fácil. Depois de um prévio, logo chegou à versão final, referência a um valor dispendioso ao pai: o de ter a cabeça boa, ser um velho lúcido, um tanto que ele gostava de enfatizar.
Figura bastante presente em sua obra, o pai de Lilian incentivou, talvez sem perceber, seu fascínio pela escrita. Foi vendedor por anos, viajava muito e voltava com vasto repertório de histórias para relatar às filhas. “Fui me apaixonando pelo som das palavras e pelas histórias que elas construíam.”
Apesar de íntima da literatura desde cedo, não faz muito tempo que Sais se considera escritora. Doutora em letras clássicas pela Universidade de São Paulo, trabalhou com preparação de texto e foi professora substituta em Salvador posteriormente passar num concurso na Universidade Federalista da Bahia. Mas, ao chegar lá, se decepcionou. “Aquilo não me preenchia. Entrei numa crise”, diz.
Sua tese já se aproximava do que hoje é seu interesse confesso —literatura escrita por mulheres, distante do cânone envelhecido e masculino que havia estudado. Em sua pesquisa, sobre personagens femininas da Odisseia, esbarrou na produção poética de mulheres contemporâneas, porquê Micheliny Verunschk e Angélica Freitas.
Queria lê-las menos por suas personagens, mais por serem narradoras de si. Passou a frequentar eventos, saraus, lançamentos, vocalizações de livro, e se sentiu secção daquele ciclo, passou a enxergar valor no que escrevia e até logo não compartilhava.
Hoje, prestes a completar 40 anos, já não hesita em preencher uma ficha com “escritora e educadora” para delimitar sua profissão. Em oficinas, seja porquê aluna ou facilitadora, acredita que a experiência da leitura coletiva —que também é criativa, segundo Sais— adiciona camadas e novas interpretações aos textos.
“As oficinas foram fundamentais. Tornaram meu olhar mais sengo. Nos momentos difíceis, grafar e falar de escrita foi o que me manteve no prumo.”
Com a produção a todo vapor, brinca que não consegue grafar só um livro por vez. Já está trabalhando em um novo projeto, que deve nomear “trilogia da boca”. Nele, pretende restabelecer um caderno de receitas da mãe, pensar a escrita porquê ato de ruminação, entre outros temas.
Não só escreve em série, porquê bagunça as gavetas de gêneros e estilos literários. Se em “A Cabeça Boa” há lirismo numa linguagem sem floreios, “As Regras”, ainda sem data de lançamento, começou porquê um romance autobiográfico sobre a relação com seu pai, contada a partir dos jogos de futebol que assistiam juntos porquê rivais: uma botafoguense contra um palmeirense. Aos poucos, entretanto, sonhos, fotos que nunca existiram e outros elementos ficcionais foram tomando conta.
“Sempre tento falar da minha vida quando escrevo, e acho que sempre falho. Ou talvez não. Poucas coisas são mais íntimas do que a imaginação.”
Independentemente da categoria que cada livro se juntura, grafar, para Lilian, é prazeroso, mesmo que boa secção de seu trabalho até cá verse sobre o luto. É logo que ela “puxa o tapete do leitor” e pretexto as mais diversas e inesperadas reações. “Eu me diverti muito escrevendo. Espero que as pessoas se divirtam lendo.”