“Membrana”, do plumitivo e jornalista Jorge Carrión, se enquadra no ensaísmo especulativo, um gênero que teve seus precursores em Jorge Luis Borges, Stanislaw Lem e Ursula K. Le Guin, cujas teorias parecem nortear a voz narrativa elaborada pelo responsável espanhol —um dos convidados da Feira do Livro, que acontece em São Paulo de 14 a 22 de junho.
“Algumas de nós começamos a usar a primeira pessoa do plural para nos referirmos ao conjunto de algoritmos, inteligências artificiais, protointeligências orgânicas, assistentes pessoais, memórias externas, (…) que integram nossa região transversal, nosso coletivo monstruoso, nossa unidade quimérica, nosso ser membrana que avança em direção ao horizonte do adeus”, diz a narração de “Membrana” a certa profundidade.
Formado por capítulos breves encabeçados por descrições de obras visuais e objetos científicos, o romance emula o catálogo de um museu construído na selva amazônica pela rede sintético autodenominada Membrana, desvelado pelos humanos em 2100.
Entre os poucos personagens, esboços mais que personagens, comparecem Ben Grossman, uma espécie de Edward Snowden pacifista, e Karla Spinoza, a maior lucidez que já caminhou sobre a Terreno.
O excerto ali do início exemplifica os maiores problemas do estilo: a narração não mostra zero, unicamente enuncia fatos e enumera coisas, deixando a leitura tão animada e enxurro de vida quanto a Siri, a Alexa e uma lista de supermercado.
Se Le Guin, em “Teoria da Cesta”, reflete sobre o valor esquecido desse objeto para a espécie humana, em sua visão mais coletora do que propriamente caçadora, Carrión promove a noção de teia, estendendo a partir da mitologia de avós e tecelãs a sua noção de rede. O que leva a platitudes do tipo: “Os corais nos lembram ou ensinam que todas as redes são sociais”.
E cá surge outro problema: desde o gabo na contracapa que o qualifica porquê queer, o livro é constituído pelas palavras-chaves e tags prediletas dos setores de marketing de qualquer editora, com o adendo do maniqueísmo explícito, a opor valores supostamente positivos (“avós”) a negativos (“padrastos”).
No entanto, o que faz a genial Karla Spinoza ao obter liberdade? Imprime um corpo para Maxi, seu assistente pessoal, a término de transar. E quem poderia julgá-la?
Toda vez que o sol se põe num romance realista, o realismo morre um pouco, pois desde Copérnico sabemos que a Terreno gira ao volta de um Sol tão resoluto quanto imóvel.
Dessa maneira, ao reincidir no erro e persistir no chavão, o realismo cercadura a pior ficção científica, esse gênero de nome autoexplicativo que ficcionaliza a ciência, e às vezes a antecipa, sem se ater à fidelidade da evidência, ou mesmo da abstração teórica. Por outro lado, cada cavaleiro rumo ao sol poente também cavalga em direção ao negacionismo.
Também, a situação oposta é verosímil, porquê ocorre em “Membrana”. Ao antecipar o funcionamento do pensamento múltiplo da rede composta por IAs, Carrión se arrisca, e logo se estabaca, pois a mente múltipla em rede de suas máquinas híbridas remete ao esperado e repisado, para não manifestar ao óbvio. São máquinas humanas, exagerado humanas.
As descrições das transas de Karla Spinoza com seu assistente pessoal Maxi mereceriam o Framboesa de Ouro, que premia os piores filmes e cenas eróticas do cinema: “A mascarada orgiástica ininterrupta, o fluxo de dados que se confunde com o fluxo da dopamina, com o sêmen algorítmico, com o orgasmo quântico, com a ejaculação de fluxos no fluxo, o dom da embriaguez metamorfoseado em uma desordem de pulsos, neofilia na veia, artérias navegadas por biochips, a membrana porquê perpétua e híbrida embriaguez de poliamor”. Fluam, minhas lágrimas, diz o leitor.
É triste desvendar, através de “Membrana”, que a literatura do horizonte, escrita por inteligências artificiais, continuará a se locupletar da mesma imposição de regra da literatura humana do cá e agora, beneficiando-se do exposição demagógico que se fixou em nossa imaginação porquê uma craca irremovível, além de seguir totalmente desprovida de humor, a não ser quando involuntário.