Chega às livrarias nesta semana o sedutor “O Mito do Mito”, lançamento da Mundo Livros. Duas curtas palavras na envoltório certamente vão levar a obra à lista dos mais vendidos —”Rita” e “Lee”.
A rainha do rock brasílio se tornou best-seller em 2016, quando lançou “Rita Lee: Uma Autobiografia”, relato franco e risonho de uma vida de música, ativismo político, veganismo, consumo de drogas e formação de uma família feliz.
Quando morreu de cancro, em maio do ano pretérito, seu livro de memórias foi novamente ao topo das vendas, e isso foi seguido por mais um volume, “Rita Lee: Outra Autobiografia”, devotado ao tratamento do tumor no pulmão diagnosticado em 2021. Saiu duas semanas em seguida sua morte.
Agora Rita Lee tem outra publicação póstuma, e é uma obra de ficção. Ou quase isso.
“O Mito do Mito” tem três personagens, dois deles reais, Rita e sua mana, Vivian. Mas a trama insere as duas numa madrugada delirante na qual o terceiro personagem é misterioso e certamente figurado, embora talvez recheado de características de pessoas que cruzaram a vida da autora.
Rita Lee começou a gerar o romance em 2005 e o reescreveu algumas vezes até a peroração, em 2019. Mostrou o resultado ao jornalista e editor Guilherme Samora, seu companheiro e escudeiro na publicação das duas autobiografias, alguém que ela define uma vez que o “guardião do meu legado”.
Ela deixou o livro pronto, em todos os detalhes. Escolheu a foto de envoltório e trabalhou nos aspectos gráficos, inclusive as bordas das páginas pintadas de preto e a inserção de um capítulo apêndice que está publicado no final do livro com as páginas de cabeça para insignificante.
Rita determinou a Samora que o livro só poderia ser publicado depois de sua morte. “Não quero ninguém me perguntando de meras coincidências com fatos ou pessoas reais. Escritora-mistério!”
Seu viúvo, Roberto de Roble, teve o livro guardado por anos em seu computador, sem saber. Ela tinha o hábito de passar ao marido alguns arquivos de texto que ele guardava uma vez que se fosse um backup, sem ler o que havia ali.
Atendendo à vontade de Rita, uma decisão conjunta de Samora, Roble e da Mundo Livros determina que nenhum deles dará entrevista sobre a obra. Roble chegou a publicar um prova na internet, só para comemorar o lançamento, sem falar do teor.
A ficção “O Mito do Mito” se afasta do tom coloquial e relaxado das duas autobiografias. O texto é construído pelo diálogo entre Rita e um psicólogo com reputação de guru, durante uma consulta num casarão no meio de São Paulo. A conversa avança pela madrugada e o tema principal é a relação entre fãs e ídolos.
A narrativa flui em grandes doses de ironia despejadas por Rita. Além de muito escrito, o romance traz uma discussão sobre idolatria nunca oferecida na literatura pátrio.
Ela fala de seus fãs, contando casos e criando teorias sobre os vários tipos diferentes de adoradores que cruzaram sua estrada. Mas às vezes se coloca, ela mesma, na posição de fã, citando um grupo muito peculiar de nomes pelos quais teve devoção, da cadela do cinema Lassie à apresentadora Hebe Camargo, passando por James Dean, Carmen Miranda e David Bowie.
O humor e o tom de fantasia que sempre estiveram em suas criações, desde as letras das canções aos livros infantis protagonizados pelo rato investigador Dr. Alex, estão impregnados em “O Mito do Mito”.
A iniciar pelas circunstâncias envolvendo a ação. Rita aceita encontrar o psicanalista Eric von Kasperhauss na única requisito oferecida pelo terapeuta. Ele só atende quem o procura depois que o sol se põe, num velho casarão que resiste à especulação imobiliária no meio de São Paulo. Pormenor —a pessoa precisa entrar sozinha no lugar.
Numa pífia tentativa de ter alguma segurança diante de um sujeito envolvido numa aura vampiresca, ela convence a mana a ir com ela. Rita põe uma escuta em sua roupa, e Vivian pede licença a uma trupe de hippies que mora em barracas próximas ao casarão para permanecer ali e escutar a conversa. Nessa disposição dos personagens, a trama leva a um final “surpresa”.
Rita usa as perguntas de Kasperhauss e as observações debochadas da mana para guiar a exposição de suas opiniões sobre a idolatria. Entre relatos carinhosos e inevitáveis deboches diante de situações ridículas, parece ter espaço para todos no coração da mãezona Rita —a ponto de destinar o apêndice a uma descrição engraçada de tipos diferentes de admiradores.
A grande preocupação da autora em ser questionada a reverência do que é verdade ou não no romance acaba se revelando um susto infundado. É simples que quem viveu próximo a ela reconhecerá a verdade de episódios que envolvem nomes famosos e irá desvendar de quem ela está falando em passagens que preservam os anonimatos. Mas o foco da obra não é esse.
O que fica do livro “O Mito do Mito”, além de horas muito divertidas de leitura, é mais uma chance de aproveitar o imenso talento que Rita Lee tinha com as palavras.