Livros Exploram Sofrimento De Escritores Com Saúde Mental 26/01/2024

Livros exploram sofrimento de escritores com saúde mental – 26/01/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

“Fazia muito tempo que ela ignorava o motivo pelo qual acudia à terapia. A tratamento era impossível, e o conforto do tratamento, cada vez mais frágil.” A poeta Anne Sexton conclui em seguida que suas sessões de psicanálise servem para ocupar “o vazio de uma mulher selvagemente só”.

Sobre seu horizonte, não há qualquer esperança. “Não acreditava nem sequer na possibilidade de se estabilizar e não desabar mais grave. Nunca acabava de desmoronar por completo.”

É o retrato dos últimos momentos de uma das autoras mais vorazes do século 20. Sexton se debateu com distúrbios psiquiátricos por quase toda a vida enquanto elaborava, autodidata, uma obra que a tornaria ponta de lança da verso confessional, derramando intimidades sem pudor e com maestria no papel.

Sua literatura, uma das mais expressivas dos Estados Unidos e já popularizada por diversos idiomas, está disponível agora pela primeira vez aos brasileiros na florilégio “Condolência”, traduzida pela também poeta Bruna Tomar.

A estreia tardia de Sexton vem num momento em que proliferam obras de qualidade sobre a relação de escritores com a saúde mental.

A espanhola Rosa Montero acaba de publicar “O Risco de Estar Lúcida”, um vasto quadro histórico sobre a relação entre a originalidade e aquilo que labareda de loucura, incluindo a si mesma no balaio e dedicando quase 250 páginas a elaborar hipóteses sobre o funcionamento da mente dos artistas.

A autora se ampara em casos reais, porquê os de Sylvia Plath e Charles Bukowski, e em dados estatísticos. Por exemplo, um estudo da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, que aponta que escritores têm três vezes mais chances de tolerar de depressão e quatro vezes mais verosimilhança de ter transtorno bipolar.

Já o sociólogo britânico Andrew Scull lança “Loucura na Cultura”, que se aproxima da questão pelo ângulo quase inverso, refletindo sobre porquê a arte passou a mourejar com a representação da insanidade —no século 19, com a disseminação dos logo chamados manicômios, eles passaram a manar quase imediatamente nas histórias de terror.

Há ainda autores dedicados a falar em primeira pessoa de seus transtornos mentais. O gaulês Emmanuel Carrère relata em “Ioga”, com subida voltagem literária, sua derrocada de um retiro místico em direção a uma instituição psiquiátrica; em dois títulos autoexplicativos, a britânica Wendy Mitchell e a americana Esmé Wang abordam suas experiências em “O que Eu Gostaria que as Pessoas Soubessem sobre Demência” e “Esquizofrenias Reunidas”, oriente previsto para trespassar em abril.

E chegou há pouco por cá “Término de Poema”, romance de Juan Tallón que contém o trecho sobre Anne Sexton que abre oriente texto. Num livro pequeno e habilidoso, o espanhol se propõe a iluminar, pela via da ficção, a “caixa preta” por trás do suicídio de quatro grandes poetas: além da americana, Alejandra Pizarnik, Cesare Pavese e Gabriel Ferrater.

São escritores separados por longas distâncias geográficas, mas que partilham influências literárias e enorme vontade vital. Para usar palavras de Tallón, todos foram acumulando, ao longo de sua vida criativa, a lenha que culminou no incêndio trágico da morte autoinfligida.

“O redactor é alguém que faz um esforço inédito para orar um pouco que é, quiçá, incomunicável”, afirma o responsável. “Sempre buscam expor um pouco de uma maneira nunca dita, desbravando um caminho novo e selvagem enquanto mergulham em si mesmos. E quando se percorre esse caminho escuro, você não sabe se vai chegar a salvo.”

É uma fala que encontra repercussão na psicanalista Maria Varão, que tem doutorado em teoria literária e literatura comparada. Ela propõe uma mudança didática na lógica com que estamos acostumados a enxergar a saúde mental.

“Somos todos, entre aspas, loucos em um primeiro momento. O que organiza o que chamamos de sanidade é o poder de dar nome às coisas com a termo e com nosso imaginário simbólico. Quando alguém se aprofunda em uma forma própria de expor o que é estar no mundo, faz segmento perder essas balizas.”

Ou seja, aqueles que se empenham no projeto de produzir um pouco radicalmente novo —artistas, cientistas, filósofos— precisam desmontar o mundo que conhecem e deslindar tudo do zero. Costuma ser um caminho com doses de dor e transe, segundo a psicóloga, que aproxima os processos de geração literária e estudo psicanalítica.

Assim, não há porquê separar as condições psiquiátricas de uma autora porquê Anne Sexton daquilo que ela expressa nos livros. Quem diz é Linda Gray Sexton, herdeira da poeta vencedora do Pulitzer.

“As pessoas perguntavam à minha mãe por que ela escrevia sobre coisas das quais ninguém ousava falar e ela respondia que sua vida era assim, não podia grafar de outra maneira”, diz Sexton, a filha já septuagenária, em entrevista por vídeo.

Quem ler a coletânea de sua mãe verá que assuntos porquê o ímpeto romântico, a exploração da sexualidade e as sensações despertadas pela maternidade aparecem ao lado de sentimentos paranoicos, solidões acachapantes e a inclinação a completar com a própria vida.

“Ela sentia muito intensamente que era seu trabalho grafar sobre seu interno e, assim, obter outras pessoas que tinham enfermidades mentais. Queria ajudá-las.”

É evidente que nenhum bom redactor enxerga seu trabalho somente dessa maneira utilitária, e é uma embuste ler a obra de Sexton por essa lente tão estrita. Mesmo que a literatura da poeta esteja entranhada a seu sofrimento psíquico, há muitos outros ângulos possíveis de leitura.

O suicida, por fim, não pode ter sua vida inteira eclipsada pela morte. Cá vale voltar a Rosa Montero, no capítulo de “O Risco de Estar Lúcida” devotado a escritores que se mataram, porquê Ernest Hemingway, Vladimir Maiakóvski, Yukio Mishima e tantos outros nomes estruturantes da literatura contemporânea.

“Tendemos a considerar que toda a existência do falecido foi uma tragédia, porquê se esse mal final envenenasse tudo, quando não é verdade”, escreve a espanhola. A maioria dos suicidas amaram a vida, gozaram de momentos maravilhosos e, segundo sua hipótese, não querem necessariamente dar cabo de si. “Simplesmente se sentem incapazes de continuar vivendo.”

Linda Gray Sexton, experiente em mourejar com novas impressões da obra de sua mãe desde que passou a ser executora de seus direitos autorais, há 50 anos, está cansada de ver editoras enfocarem seu lado obscuro e ignorarem tantos de seus poemas mais luminosos.

“Eu odeio essas edições do tipo ‘Anne Sexton, a poeta suicida’, que trazem na capote a imagem de uma mulher louca, porque são tão limitadoras. Ela era muito maior do que isso.”

Folha

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