“Não vou conseguir dar um prova, uma coisa seca sobre mim mesma”, disse Conceição Evaristo à jornalista Yasmin Santos, que preparava um livro sobre a vida dela. “Falar da minha origem, da minha família, da favela, coisas que inspiram minha geração literária, faz com que eu navegue pela ficção. Trazer à memória é fazer ficção.”
Uma enunciação uma vez que essa, que faria uma fileira de biógrafos terem arrepios dos pés à cabeça, foi recebida com naturalidade por Santos. Ela respondeu que, quando se trata de lembrar, autoficção era inevitável.
A autora de “Ponciá Vicêncio” seguiu portanto mais à vontade para desfiar causos de sua puerícia em Minas Gerais, de seus trabalhos domésticos ainda moço, de sua mudança ao Rio de Janeiro para dar aulas, do tálamo com o grande paixão de quem ficou viúva, de seus primeiros momentos tateando a teoria de ortografar alguma coisa para ser publicado.
As histórias compõem “Conceição Evaristo: Voz Insubmissa”, lançado agora pela Coleção Brasileiras, da Rosa dos Tempos, um trabalho coordenado por Joselia Aguiar e que se aproxima de outro lançamento relevante desse mês da Consciência Negra.
“Lélia Gonzalez: Um Retrato”, da filósofa e ativista Sueli Carneiro, também abraça o repto de delinear uma vida referencial da negritude brasileira empenhada em substanciar mais o coletivo que o individual.
As duas obras se afastam da pretensão de ser uma biografia exaustiva, se definindo uma vez que um breve perfil biográfico e abrindo margem para leituras mais subjetivas, em que as autoras não se furtam a inserir suas próprias histórias ao lado das mulheres retratadas.
“Uma vez que é um experiência um pouco mais livre, tomei uma vez que matéria-prima a memória da Conceição”, afirma Santos, jornalista carioca que também trabalha uma vez que editora na Companhia das Letras, ressaltando que isso não significa o deserção da objetividade.
“É simples que recorro a arquivos, cartas e diários, e em alguns momentos confronto o que Conceição me conta. Mas uma vez que ela trabalha com ficção, me senti confortável para deixar que entrasse por esses caminhos da memória que podem levar a alguns becos.”
Uma vez que disse a escritora durante as entrevistas, esse manobra de lembrar o pretérito é de onde ela “tira o sumo de sua escrita”. Mas outra frase também assombrou Santos no processo —Conceição sempre costumou martelar o mantra “leiam meus livros, não minha biografia”.
Isso porque receava ser posta numa vitrine que destacasse sua figura em vez de seu projeto estético. A solução achada pela jornalista foi polvilhar o livro com trechos de obras uma vez que “Becos da Memória” e “Histórias de Leves Enganos e Parecenças”, para ressaltar que “o ouro está ali”.
Vida e obra são coisas difíceis de dissociar numa autora dos quais projeto literário se baseia no concepção da “escrevivência”. É por isso que a biógrafa também resolve destinar algumas páginas a “escreviver” sobre sua própria família, destacando paralelos entre sua avó, Alayde, e a mãe de Conceição, Joana.
Talvez o diferencial do livro, diz Santos, seja esse caráter de conversa intergeracional —ela tem 26 anos, e Conceição completa seu 78º natalício nesta sexta (29).
É um paisagem que surge também no livro de Carneiro, mesmo com a diferença de meros 15 anos entre ela e Gonzalez, que militaram juntas no movimento feminista preto até a morte da segunda em 1994.
“Sueli é alguém que conheceu Lélia vindo de uma geração ulterior e, assim, consegue oferecer uma visão nuançada, multifacetada de quem ela era”, diz Fernanda Silva e Sousa, que editou o livro na Zahar —Carneiro preferiu não dar entrevista, mas retrata Gonzalez numa posição de reverência.
Seu livro permite prever uma pessoa que avançou conceitos uma vez que a interseccionalidade e a “língua pretuguesa” —elaborando uma visão global sobre os efeitos do racismo, do machismo e do colonialismo—, mergulhou na militância partidária na redemocratização e se transformou em referência para gente uma vez que a americana Angela Davis.
Gonzalez tirava lições públicas de sua história privada —ela se projetou ao cenário internacional a partir de uma família pobre de 18 irmãos em Belo Horizonte e refletiu sobre a adoção do estilo black power no seu próprio visual uma vez que meio de transformar sua imagem em instrumento de mobilização política.
Essa inserção do pessoal no intelectual integra tanto o trabalho das biografadas quanto o das autoras de seus perfis. “É uma escrita negra que reivindica essa subjetividade”, afirma Silva e Sousa. “É alguma coisa que as pessoas brancas não costumam fazer —elas inserem suas vidas num coletivo.”
São vários os trechos de “Voz Insubmissa” que mostram Conceição sendo a primeira pessoa negra reconhecida com qualquer prêmio ou homenagem e repisando a teoria de que o mais importante é que aquela saliência não fosse restrita só a ela, mas a primeira ocasião a muitas mulheres negras.
“Tem grandes biografias com os feitos de personagens masculinos, e muitas vezes a escrita de personagens femininas é feita por homens também”, aponta Santos. “Não contesto isso, há ótimos trabalhos. Mas é desigual o espaço de autoras escrevendo sobre mulheres que foram importantes.”
“Quando oferecemos ao público esses encontros entre mulheres, alimentamos um novo olhar sobre essas personagens, que as complexifica. É um ponto de vista para pensar uma novidade subjetividade.”