Uma vez que a centopeia presa ao grudar que estampa o peitoral de seu amante, Daniel Craig rasteja nu pelos lençóis de hotéis decadentes já nos primeiros minutos de “Queer”. Nas duas horas seguintes, o suor de seu corpo se mistura ao de homens mais novos, menos seguros de sua homossexualidade, mas dispostos a se deitar com ele em troca de prazer e afeto passageiros.
No novo filme de Luca Guadagnino, que chega aos cinemas nesta quinta antes de estrear na Mubi, o galã publicado por fazer um James Bond menos machão e mais sensível fica à mercê da ânsia homoerótica do diretor italiano, no que é provavelmente o volume mais explicitamente gay de sua filmografia.
Já nos primeiros instantes vemos Omar Apollo, voz emergente do pop americano, num vasqueiro nu frontal masculino, antes de submergir sua virilha na boca de Craig, sentado na extremidade da leito com o olhar suplicante e embriagado.
“Eu tinha 22 anos quando fiz um curta que era praticamente uma cena de sexo, logo filmar homoerotismo é uma coisa originário para mim. Eu dirijo minhas cenas de sexo uma vez que dirijo dois personagens conversando”, diz Guadagnino, por vídeo. “As histórias é que pedem por aquilo que precisam.”
Foi assim em “Me Chame pelo Seu Nome”, que rendeu à cinefilia a delirante imagem de um pêssego masturbatório, e no mais recente “Rivais”, que transformou as raquetadas de uma partida de tênis em orgasmos múltiplos. E até na série “We Are Who We Are”, em que a ingressão abrupta de um garoto num vestiário masculino desperta sensações desconcertantes.
Alguns com mais nudez do que outros, mas sempre provocando a imaginação de seu público, uma vez que os vários memes que “Rivais” rendeu ao longo deste ano comprovam. Agora, Guadagnino atinge seu orgasmo no mais sensual de seus filmes, que ele conta estar em processo de desenvolvimento há 36 anos, de certa forma.
“Queer” é uma adaptação do livro homônimo de William S. Burroughs, responsável basilar da literatura LGBTQIA+ e da geração beat. Nele, acompanhamos William Lee, alter ego do jornalista, que numa crise de dieta de drogas se apaixona por Eugene Allerton. A adaptação estreou no Festival de Veneza e, no primícias da semana, rendeu a Craig uma indicação ao Mundo de Ouro de melhor ator de drama.
Guadagnino diz que a vontade de conciliar “Queer” surgiu quando ele tinha unicamente 17 anos, e entrou em contato com o livro pela primeira vez. “Mas eu tento não forçar as coisas, e a vida sempre vai na direção em que precisa ir”, diz ele sobre a lentidão para filmar a obra. A razão mais prática, porém, é o trajo de os direitos autorais terem sido assegurados unicamente em 2022.
Diferentemente dos outros filmes de Guadagnino, “Queer” é habitado por figuras feias, com unhas sujas, camisas suadas, cabelos sebosos e rostos manchados pelo tempo. Serve de contraste aos belos cenários, que evocam mais os delírios criativos de Burroughs do que a Cidade do México dos anos 1950.
Do galã viril de Craig ao twink de Apollo, todos passaram por um processo de deterioração, também para ressaltar a venustidade perigosamente simples de Drew Starkey quando ele entra em cena. Planeta de “Outer Banks”, série de jovens descamisados da Netflix, ele oferece ao protagonista um vislumbre de uma vez que seria a vida sem a solidão inerente à homossexualidade naquela dezena.
Uma vez que num caleidoscópio, os cenários levam cores pouco naturais, contribuindo também para uma tradução mais precisa da literatura de Burroughs, que em livros uma vez que “Queer”, “Almoço Nu” e “Junkie” imprimiu suas vivências enquanto um “obstinado viciado em drogas”, em suas palavras.
“Queer” é desconjuntado, letárgico, oferece mais experiência do que lógica. Suas sequências se entrelaçam mais pelos temas, não necessariamente pela cronologia, e visões surrealistas se avolumam conforme o protagonista mergulha mais fundo em sua trágica solidão.
Mais para o final, quando toma chá de ayahuasca, feito com vegetalidade amazônicas psicodélicas, ele contempla seu corpo se fundindo ao do amante, numa sequência que sintetiza os anseios e as dores das duas horas e meia de filme.
Tudo ao som de uma trilha sonora anacrônica, que junta Nirvana e Prince a Caetano Veloso, voz de uma música original composta pela dupla de colaboradores frequentes Atticus Ross e Trent Reznor. Guadagnino é fã do brasiliano, que também cantou em seu último trabalho, “Rivais”.
“Eu o admiro desde a primeira vez em que o ouvi. Ele é um dos maiores intérpretes que já existiu. Uma vez que o filme é muito romântico, e uma vez que eu sou ávido e meio megalomaníaco, pedi que convidassem o Caetano, e ele aceitou”, diz o italiano. “Logo será que eu posso usar o seu jornal para proferir a ele o quanto o senhor?”, questiona, rindo.
Esse romance faz do protagonista de “Queer” um sujeito frágil e frágil, o contrário do que se esperaria de um galã hollywoodiano até pouco tempo detrás. Questionado sobre o trajo de personagens gays não serem mais uma prenúncio a astros uma vez que ele, e se ser queer, uma vez que o título do filme brada, é visto hoje uma vez que um tanto bacana, Craig titubeia, incerto sobre o que proferir.
“Nós não vivemos num mundo perfeito, mas muitas coisas mudaram para melhor. Mas me parece restringido pôr as pessoas em caixas”, diz ele com simpatia, pouco antes de a entrevista ser interrompida abruptamente por sua equipe, antes do tempo combinado.
Craig ainda teve tempo de proferir que não poderia ter feito “Queer” em paralelo à franquia “007”, porque pareceria uma “reação a Bond, um tanto que não seria artisticamente viável”. É uma fala que se repete na campanha de divulgação do filme, e que não foi exatamente muito vista por alguns.
Ao que tudo indica, mesmo que um livro tão explicitamente gay quanto “Queer” alce voo em Hollywood, muitas de suas temáticas ainda são tratadas com excessiva cautela. Isto ficou evidente no longa de outro cineasta afeito ao debate LGBTQIA+, Todd Haynes.
Recentemente, ele viu Joaquin Phoenix, heterossexual uma vez que Craig, largar as gravações de seu novo longa inesperadamente, no que se discute, nos bastidores, ter sido um ataque de pânico por chegar tão próximo de protagonizar cenas de sexo gay.
Ao menos esta missão o tradutor de James Bond, definitivamente, não viu problema em enfrentar.