“Eu pari e o parto fez de mim uma gaiato. Button saiu de mim, me virei para o lado e minhas pernas se enrodilharam em posição fetal. Nunca quis tanto a minha mãe uma vez que naquele momento”, escreve Szilvia Molnar.
A protagonista de seu romance, “Máquina de Leite”, é uma mulher que sofre e pena, dos quais corpo se esfacela e cuja mente vai se esvaindo por quase 200 páginas. Também é uma mulher que governanta e protege sua filha, Button, recém-nascida uma vez que um meteoro que se abate sobre sua moradia.
Não há conflito entre as duas coisas —ou melhor, há, mas é o mesmo conflito que habita tantas e tantas mães.
“É que às vezes eu me imagino esmagando Button com o pé”, diz a narradora sobre a filha. “Lá vem o pensamento medonho de novo, mas desse jeito o bulha acabaria de vez. Eu poderia voltar para a minha escrivaninha e ninguém sentiria falta da bebê.”
Não são sentimentos zero fáceis de elaborar, e Molnar não o faz com displicência. É que sua ficção está preocupada sobretudo com a honestidade, por mais repulsiva que seja.
“Grafar esse livro foi uma experiência catártica para mim, mas também era um tanto que gostaria que fosse útil para o mundo”, afirma, em entrevista, a escritora nascida em Budapeste, mãe de dois filhos e prestes a completar 40 anos. “Se eu compartilhar isso, talvez alguém por aí se sinta menos sozinha, sabe?”
“Se eu achasse que havia muitos livros falando tão explicitamente sobre isso, não teria me sentido tão esperançado e ansiosa para me expor tanto”, afirma Molnar, que há anos trabalha com direitos autorais no mercado literário americano —ou seja, é alguém que pode falar com segurança sobre essa escassez.
Sintoma da raridade do relato feito em “Máquina de Leite” —um título que já adianta o estado de espírito da protagonista, transformada de tradutora experiente a produtora de fluidos— é a popularidade que a obra tem conseguido. Esse romance de estreia da autora, até cá pouco conhecida, já teve seus direitos vendidos para oito países.
Antes mesmo da tradução brasileira de Marcela Lanius permanecer pronta, a obra já tinha uma leitora notável por cá —a escritora Vanessa Barbara, que cita vários trechos do original “The Nursery” no recém-lançado “Três Camadas de Noite”.
São obras que dialogam diretamente e compartilham um vigor incomum. Em sua ficção, Barbara faz uma espécie de quotidiano de uma mãe que lida com depressão muito antes do promanação do fruto, Heitor, quadro que se intensifica com os desafios da geração do menino.
“O problema não era só um bebê difícil”, narra ela. “O problema sempre foi a mãe.”
“Ainda é muito possante essa teoria de que a mãe com depressão ‘governanta menos’ os filhos”, diz a escritora de 41 anos, mãe da pequena Mabel, por email. “Porquê se ela fosse irregular por não sentir o que as outras sentem, ou uma vez que se falar claramente sobre isso fosse capaz de ‘assombrar’ os filhos.”
Se reclamar de cansaço ainda é plausível, afirma ela, falar a sério sobre o próprio estado depressivo prejudicaria a saúde da gaiato, segundo esse tino geral. “Ou seja, não basta sentir o que se sente: as mães com depressão também precisariam abrasar ao supremo a própria anedonia, do contrário estariam sendo injustas com os filhos. Uma estrato de culpa em cima da outra.”
Uma particularidade do romance de Barbara é a procura por referências externas: relatos crus do dia a dia se intercalam com paralelos da mitologia grega e biografias curtas de autores uma vez que Sylvia Plath, Clarice Lispector, Franz Kafka, Henry James e sua mana, Alice James —cada um conversando com um momento específico da jornada materna da autora.
“Eu me interessava em saber sobre o cotidiano de escritoras e escritores com filhos e/ou com depressão unipolar”, afirma ela. “Porquê eles conseguiam produzir qualquer coisa nessas situações?”
No romance de Molnar, pipocam relatos de uma vez que John, marido da narradora, tenta trazer à mesa de jantar assuntos diversos sobre o noticiário com os quais a mulher não consegue engajar —tudo que é capaz de pensar, entre a exaustão e a preocupação involuntária, é na imposição dominante do zelo com o bebê.
Durante a entrevista, Molnar solta uma risada breve ao concordar que isso a afetou também, e não havia outra escolha senão grafar “Máquina de Leite”, tamanha se fazia a presença da maternidade.
Barbara oferece uma resposta mais elaborada diante de uma pergunta sobre se sentir obrigada a grafar com base em sua experiência. “Em última instância, ‘Três Camadas de Noite’ é o romance que fui capaz de grafar. Quando somos limitados por certas circunstâncias —depressão, maternidade, pandemia, pindaíba financeira ou o que quer que seja—, nosso cardápio de escolhas vai encolhendo.”
“A essa profundidade, há mais resignação do que ressentimento”, continua a brasileira. “Por isso também foi interessante ler a biografia desses outros escritores: todos tiveram seu leque de escolhas restringido, e todos procuraram fazer o verosímil com o que tinham à mão.”
Essa limitação não significa cá, em integral, constrição de originalidade. Em uma cena que borda o surrealismo, por exemplo, a narradora de Barbara, desmantelada por noites e noites de privação de sono, descreve uma singela experiência extra corpórea.
“Quando fui deitar de manhã, lá pelas sete, encontrei a porta do nosso quarto fechada. Confesso que abri com zelo para não passar o risco de assustar a mim mesma caso eu estivesse ali dormindo.”
A desassociação surge em “Máquina de Leite” também, mais uma vez que um estranhamento cruel do próprio corpo. “Enquanto a chuva corre, tiro as roupas com zelo. Não tenho pavor do monstro que se apresenta diante do espelho.”
“Quando eu fiquei prenhe pela primeira vez, senti uma urgência de reler ‘A Transmutação’, de Kafka”, conta a húngara, sobre o livro dos quais protagonista vira uma barata. “Entre todos os livros para mamães que eu li, talvez esse fosse o melhor para descrever a experiência da gravidez, uma vez que um momento que muda você física e mentalmente.”
Lembra até uma citação de “As Abandonadoras”, da espanhola Begoña Gómez Urzaiz, mais um dessa leva impressionante de relatos sobre a humanidade das mães. Muitas mulheres que a autora perfila, segundo ela, “buscavam um impossível: ter filhos sem ter que se transformar em mães”.
Molnar também é sucinta sobre isso muito no primícias de seu livro. “Sou mãe desde que Button saiu de mim”, aponta a narradora. “E, apesar de tanto que já tive que abraçá-la, ainda não abracei o título.”