Em “Verso Mundi”, de Marco Lucchesi, os leitores se veem diante de um planta poético variado e extenso, desenhado cuidadosamente para que eles se orientem, mas também se percam nele. As múltiplas referências literárias, artísticas, políticas vão revelando um território fascinante.
Em “Meridiano Sidéreo”, lê-se: “Muito sei que as partes/ que me cercam/ não me atendem/ que me debato/ num exílio/ de fontes e cuidados// que sonho a cada momento/ um vento que me ligeiro/ para outro mundo// esse outro cada vez/ mais outro/ e mais distante”.
O “Bestiário”, uma das seções do livro, expõe esse mundo mais distante, lembrando que “o poeta é uma fera cercada de palavras”, uma vez que destaca a sua título. No poema “Vagalume”, o “Sábio// alquimista// do ouro das estrelas// Teóforo da negrume// Prepara/ na vigília do graal// uma insurgente// epifania”.
De epifania em epifania, o livro de Lucchesi vai se construindo através dos tempos. Também tradutor, ele homenageia o colega Curt Meyer-Clason, responsável por verter para o teuto nomes importantes da literatura brasileira uma vez que Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.
O diálogo entre as línguas acompanha o diálogo entre as épocas e os lugares do mundo. Dedica-lhe um poema, escrito em teuto, “Ein Himmel”, oferecendo a seguir sua autotradução, “Firmamento (versão literal)”: “Um Firmamento e duas pátrias – Um Firmamento em que florescem estrelas novas”.
Da seção “Hinos Matemáticos”, “Cantor” cita o poema “Sacred Emily”, de Gertrude Stein. Nesse panegíricio à verso da grande autora vanguardista, percebe-se o grande escopo estético da obra de Lucchesi, que reúne o tradicional e o experimental.
“Um rosa é uma rosa/ uma rosa// uma rosa”, repete a voz poética de Stein, para concluir que “Não se// desfaz// em nevoeiro// tanta// glória”.
A forma escolhida para recriar as linhas mais importantes do poema da escritora estadunidense é a do vanguardista Guillaume Apollinaire, o inventor do caligrama. Assim, o contato entre os poetas vai além dos dados existenciais mais óbvios.
Vários outros escritores ganham destaque na seção “Faces da Utopia: Visitações”. Dela constam, por exemplo, a vida e a obra de San Juan de la Cruz, Friedrich Hölderlin, Georg Trakl e Velimir Khlébnikov, cujos versos são recriados ou comentados nas palavras de Lucchesi.
No poema devotado a Khlébnikov, por exemplo, lê-se: “Caiu a prisão da camisa”// Zero mais fiz que tirá-la.// Estava nu junto ao mar// Dei sol aos povos de Mim!// Assim eu libertava// milhares e milhares”.
Em “Pavanas”, da seção “Mal de Paixão”, a voz poética põe em cena artistas de áreas diversas. Yves Klein, que performatizou o “Salto no Vazio”, agora ensaia um novo “salto irreversível no silêncio e um duro libido de partir”.
O pássaro de Brancusi parece ser citado, e seria talvez “o pássaro que ao mundo não se atreve. Seu quina não aduz a memória do voo”, mas Billie Holiday canta no lugar dele nos versos de Lucchesi.
Não estaria sendo oferecida ao leitor, outrossim, uma reinterpretação de “O Cão Andaluz”, filme de Luis Buñuel e Salvador Dalí, por intermédio destes versos: “Teu sonho, precipício líquido, uma constelação insone,/ em procura de não sei que estranhas órbitas”?
As tensões políticas da atualidade não ficam de fora do território poético de Lucchesi. Em “Morte Ritual”, poema da seção “Mar Mussa”, devotado “aos mortos da Síria”, lê-se: “Arde em chamas a tenda de Abraão// Os deuses ébrios de festins sangrentos// A firmamento desimpedido os corpos ultrajados// E as aves de rapina mais robustas”.
O poema “Índias”, que integra seção “Clio”, se passa na costa oeste da Índia, onde o narrador se perde sem pânico nem pudor “no golfo sinuoso” dos “seios” sublimes de Déli. É interessante pensar que o redactor inglês Edward Lear, um dos pais do nonsense vitoriano, também escreveu um poema que se passa na mesma localidade.
Diferentemente do que ocorre no poema de Lucchesi, no qual a miscigenação cultural é bem-vinda, no poema de Lear o narrador expulsa a nativa de sua própria terreno, para evitar qualquer tipo de relacionamento interracial. O poeta brasílio repõe em circulação uma velha questão, dando a ela a resposta do século 21.