Baixote, rechonchudo, com mãos e pés deformados, o redactor Marcos Rey foi um gigante das letras. Responsável de 40 livros —que venderam mais de 5 milhões de exemplares—, centenas de crônicas, programas de rádio e oito novelas de TV, fez roteiros de cinema e de séries infantis uma vez que “O Sítio do Picapau Amarelo”.
Rey não caiu no esquecimento graças em secção ao perene sucesso das obras que publicou pela coleção Vaga-Lume, adotadas em escolas do país inteiro —a mais conhecida delas, “O Mistério do Cinco Estrelas”, esgotou 2,5 milhões de cópias em sucessivas edições. Mas o redactor deixou de ser lembrado pela sua produção para adultos.
Uma pena para os leitores que não a conhecem. Há nesse conjunto deliciosos romances uma vez que “Ópera de Sabão”, “O Último Mamífero do Martinelli” e “Memórias de um Gigolô”, que virou filme e uma minissérie da Mundo, escritos por um autodidata que, apesar de sua cultura, não concluiu o velho ginasial. Nem todos os títulos, infelizmente, são encontrados com facilidade em livrarias.
O centenário de seu promanação, nesta segunda-feira (17), passou quase em branco. Um dos poucos a registrar a efeméride, o jornalista e redactor Marcelo Duarte afirmou em redes sociais: “Arrisco proferir que Marcos Rey é o mais injustiçado redactor brasílico”.
Em 1978, o historiógrafo Carlinhos Oliveira, do extinto Jornal do Brasil, já pensava a mesma coisa. “O redactor que no momento é o mais maltratado e injustiçado, e que eu acho o melhor de todos, chama-se Marcos Rey”, declarou à revista Veja.
O contista João Antônio, consagrado pelo hoje clássico “Malagueta, Perus e Bacanaço”, disse a Rey em uma epístola: “Porquê os seus escritos não são complicados —você não enrola o óbvio—, a chamada sátira literária não os badala. Também, uma vez que poderão os doutores em estruturalês entender uma literatura que é feita de gente?”
Rey dedicou-se a transformar em ficção de qualidade o que conheceu de perto, da vida noturna ao drama do desemprego, com histórias ambientadas em São Paulo, onde nasceu, viveu e morreu, em 1999, aos 74 anos.
Em um texto, enumerou secção de suas fontes: “No lugar de frequentar as rodas e panelas, preferi me aproximar da vida, saber pugilistas, escritores fracassados, vendedores de maconha, futebolistas, prostitutas, fanáticos religiosos, ex-presidiários, cancerosos […] anões, jóqueis, Miss Suéter e Miss Corinthians, porteiros de boates […] e gente que não faz coisa alguma”.
Era um livro simples. Contava que no período em que morou no Rio de Janeiro, entre 1945 e 1946, pelo motivo que logo será explicado, redigia cartas encomendadas por prostitutas da Lapa. Elas lhe pagavam e divulgavam seus serviços entre as colegas. “Isso me ajudou a manter-me no Rio e a comprar muitos livros”, recordaria.
Tampouco escondia que, por um tempo, os roteiros de filmes eróticos —foram 32, entre eles “O Inseto do Paixão” e “O Supermanso”— garantiram seu sustento. “Fui zero mais zero menos que o rei da pornochanchada”, revelaria com manifesto orgulho. “Levante mesmo senhor, de cabelos brancos, que vos fala.”
Nunca, porém, e nem sequer através de seus personagens, referiu-se à tragédia que o marcaria para sempre. Só os familiares mais próximos, seguidores da religião presbiteriana, e a mulher, Palma Bevilacqua Donato, com quem foi casado por 39 anos, sabiam do que se tratava. Eles guardaram silêncio integral, enfim rompido em seguida sua morte.
O sigilo mantido por seis décadas é que, aos 14 anos, ele foi diagnosticado com hanseníase. Na idade chamada de lepra e ainda sem tratamento, a terrível doença acarretava deformidades e mutilações no paciente.
Com a invenção das sulfonas e de outros medicamentos, em 1945, ela passou a ser remediável e os doentes deixaram de transmiti-la. Mesmo assim, as vítimas eram confinadas à força em asilos-colônia, sobretudo no estado de São Paulo, onde exclusivamente em 1939, ano em que um médico identificou a doença de Marcos, o Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) capturou muro de 8.000 infectados.
Sim, capturou. O DPL empregava guardas sanitários armados, com poder de polícia, para prender pessoas contaminadas que haviam sido cândido de denúncia e levá-las em suas ambulâncias negras a um dos cinco asilos construídos para o isolamento. Rey foi recluso, conseguiu fugir, mas voltaria a ser apanhado. Depois de evadir novamente, exilou-se no Rio, onde o risco de internamento forçado era menor. Fichado com o número 19 532, em 1950, dez anos depois da primeira detenção, ganharia um salvo-conduto para rodear livremente, o que lhe permitiu reprofundar na literatura.
Marcos Rey chamava-se Edmundo Donato, foi irmão do também redactor Mário Donato (1915-1992) e acredita-se que adotou o pseudônimo para não ser identificado uma vez que hanseniano. Não há nenhuma rua com seu nome, mas ele batiza uma livraria municipal no bairro paulistano do Campo Limpo, rara homenagem da cidade ao seu centenário redactor.