Claudia Rankine escreve sobre a vida contemporânea nos Estados Unidos a partir da experiência e a sensibilidade de pessoas negras. Ao registrar eventos históricos e simples eventos cotidianos, a poeta elabora o que labareda, em seus últimos três livros, de “uma lírica americana”.
Com uma linguagem simples, próxima do experiência, a poeta discorre sobre sentimentos, angústias e até mesmo somatizações de traumas, expondo a complicação de viver em uma sociedade racista sem recair em um tom que poderia ser tachado de vitimista.
Os fragmentos reunidos em “Não Me Deixe Só”, registrados a partir de 1999, ganham contornos políticos mais contundentes com a eleição de George W. Bush e os atentados do 11 de setembro de 2001. A insônia, um mal-estar difuso desencadeado por interações racistas, as informações sobre porquê o fígado humano processa alguns medicamentos, a depressão e o luto se misturam a análises de notícias e anúncios publicitários.
Leitores de Rankine reconhecerão a justaposição de textos intimistas e reflexões quase teóricas, embasadas em pesquisas referenciadas nas notas ao termo do livro.
Ler “Não Me Deixe Só” em 2024, duas décadas depois sua primeira edição, pode toar porquê uma visitante a um pretérito ainda muito presente no cenário contemporâneo. A fragilidade da democracia e das relações diplomáticas internacionais já se anunciava com início da guerra dos EUA ao Iraque e o acirramento do exposição antiterrorista, uma vez que as medidas segurança pós 11 de setembro serviram porquê pretexto para a supressão de direitos de cidadãos americanos e porquê justificativa para a tortura de prisioneiros guerra em Abu Ghraib.
A solidão dessa vida de mudanças e de turbulência política ressurge sob diferentes prismas ao longo da obra. A tentativa de definir a solitude, a sensação de se estar só numa leito do par em noites em que um de seus ocupantes dorme e o outro não, as observações sobre o que não é comunicável na experiência do luto e até uma cena em que uma mulher negra e um motorista de táxi paquistanês conversam sobre porquê são julgados por suas aparências embora sejam muito diferentes são exemplos de porquê a voz poética procura os limites do que seria compartilhável entre os seres humanos.
Cabe observar que o título original, “Don’t Let Me Be Lonely”, traz outras associações, pois “lonely”, em inglês, também significa só(a). Os textos sobre depressão e ideação suicida evocam o sentimento de desconexão com a vida e de porquê a linguagem irregularidade em determinadas situações.
A amizade, tema ainda mais relevante nos livros posteriores de Rankine, surge porquê espaço de diálogo e presença. Mas mesmo a intimidade, a convívio e as relações familiares se deparam com os limites da possibilidade de se expressar sentimentos.
Há também uma sequência de fragmentos sobre alegrias singelas, porquê uma visitante à avó no asilo em que, depois discorrer sobre o desencanto com o sonho americano, a poeta fuma sob o sol de inverno junto com a idosa, contemplando a rua. O silêncio, o humor e companheirismo criam refúgios contra possibilidades distintas de isolamento.
Embora chegue ao Brasil somente depois a publicação dos outros títulos da trilogia de Rankine —”Cidadã” foi lançado em 2020 pela Jabuticaba, e “Só Nós” saiu em 2021 pela Todavia—, não é preciso ler os títulos na ordem para a respeitar a sofisticação da obra de umas da poetas de língua inglesa mais relevantes atualmente.
“Não Me Deixe Só” alterna momentos angustiantes e ternos, apontando para questões que Rankine elaborou com mais zelo nos volumes seguintes. Mas, ali já existe a sua reflexão sobre a fenda para o diálogo e a escuta porquê essenciais para velejar tempos violentos.
A disponibilidade para o outro ainda se apresenta porquê um modo de pensar a influência da trova em nossos tempos: “Ou Paul Celan disse que o poema não era dissemelhante de um aperto de mão […] O aperto de mão é nosso inquestionável ritual tanto de declarar (estou cá) porquê de entregar (cá está) um eu a outro. Portanto o poema é isto –Cá está. Estou cá. Essa confluência da solidez da presença com a oferta dessa mesma presença talvez tenha tudo a ver com estar vivo”, escreve ela.