Há determinadas biografias que quando lemos pensamos: por que demorou tanto tempo para alguém grafar leste livro? É o que acontece com “Tudo Passará: a Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Cantiga”, obra escrita pelo experiente jornalista André Barcinski e lançada no final do ano pretérito pela Companhia das Letras.
Uma vez que pode um cantor homúnculo mineiro fazer sucesso em toda a América Latina e EUA por décadas e ser praticamente ignorado pela escol cultural de seu país? Esse é um dos motes da biografia escrita por Barcinski.
Nascido na pequena Ubá (MG) em 1947, Nelson Ned teve na família a estima e carinho que sempre perseguiu na esfera pública. Tratado porquê um tipo pleno pelos pais, sem pena ou condescendência, destacou-se porquê artista mirim. De Minas para o Rio de Janeiro, galgou a nomeada sem nunca ter feito outra coisa na vida a não ser trovar. Diferentemente do seio familiar, encontrou na vida pública preconceitos, resistências e, sobretudo, chacotas. Desde o primeiro disco, sintomaticamente intitulado “Um Show de Noventa Centímetros” (1964), teve sua deficiência explorada por marqueteiros sem escrúpulos.
A escrita de Barcinski não somente denuncia o preconceito vivido pelo cantor, mas mostra porquê ele sempre soube subverter os olhares pré-julgadores e usava o descompasso entre seu tamanho físico e o de sua voz para enfeitiçar as multidões. E porquê ele enfeitiçou! Seus discos venderam tanto e em tantos países que qualquer contabilidade só pode ser feita por aproximação. A discografia de Ned estará sempre incompleta, pois há inúmeras recompilações e reedições de seus discos por toda a América Latina, várias delas organizadas sem o consentimento do cantor.
Ned é um biografado ideal. Espanta que nós, biógrafos, tenhamos demorado tanto a percebê-lo. Temperamental porquê seus boleros, irascível e virulento porquê os mais drogados do mundo do rock, genioso e histriônico porquê quase todo grande artista, foi da nomeada mundial nos anos 1970 à pobreza na morte em 2014. Participou de surubas e tornou-se evangélico. Jantava com os chefes dos cartéis colombianos, porquê Pablo Escobar, e era admirado pelo literato Gabriel García Márquez.
Ned era muito mais chancelado fora do Brasil do que em seu próprio país, mormente entre as elites culturais. O ressentimento em relação a essa quesito levou o cantor a surtos acusatórios contra artistas da MPB. Ronaldo Bôscoli, Elis Regina, Chico Buarque e, mormente, Caetano Veloso foram frequentes alvos de sua língua ferina.
Orientado pelo empresário Genival Santos, figura que por si só merecia biografia própria, Ned viveu na pele a formação de um padrão estético que o excluiu. Muitíssimo influenciado pela vaga bolerista dos anos 1950, ele alçou o sucesso nas décadas seguintes, quando as elites culturais brasileiras passaram a repudiar o gênero. Ele estava na contramão. E seu país nunca lhe deu o lugar que uma Angela Maria ou um Cauby Peixoto tiveram no seu tempo.
Curioso paradoxo é que Ned nunca abandonou de indumentária o Brasil, quando poderia ter ganhado muito mais se tivesse ido morar em Miami ou na Cidade do México, por exemplo, onde era respaldado pelas multidões e não era triturado pela intelectualidade. Enquanto na América Latina e EUA ele fazia shows em estádios e casas de saudação, porquê o Carnegie Hall em Novidade York, no Brasil ele se apresentava em teatros, circos e pequenas locações.
O livro de Barcinski ganha ritmo à medida que acompanha o artista. Para entender por que Ned nunca obteve o prestígio almejado, Barcinski reconstrói sua trajetória com cores vibrantes sem diminuir a individualidade do artista, suas atitudes e escolhas. O responsável trata seu biografado porquê seus pais o trataram: sem pena ou condescendência, mas com muito saudação.
Sua vida familiar não menos turbulenta, o vício em drogas, o consumismo extravagante, o conservadorismo estético, a falta de um olhar empresarial mais perspicaz e a exiguidade de travas na língua explicam o ocaso do artista. E mostram porquê prestígio e sucesso são coisas diferentes.
Nelson teve sucesso desde que gravou sua constituição “Tudo Passará”, de 1969. Ao lado de Maysa, Altemar Dutra, Waldick Soriano, Claudia Barroso e Agnaldo Timóteo, tornou-se o maior dos boleristas brasileiros dos anos 1970 e 1980.
Mas prestígio e sucesso são coisas diferentes. O prestígio que Ned almejava nunca foi obtido das elites intelectuais. Até agora. O livro de Barcinski é o segundo livro (e primeira biografia) a tratar a obra do bolerista com o devido saudação. O pioneirismo devemos ao clássico “Eu Não Sou Cachorro, Não: Música Popular Cafona e Ditadura Militar”, lançado em 2002 por Paulo César de Araújo, devidamente creditado por Barcinski em sua obra.
“Tudo Passará” é um livro que ilumina uma secção apagada da música brasileira com a singularidade que somente a trajetória de um gigante porquê Nelson Ned poderia permitir. E, para isso, foi preciso um biógrafo atilado e perspicaz porquê André Barcinski que, ao transformar bolero em literatura, dimensionou a história de um gênio brasiliano em suas limitações e grandezas.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul inferior.
