Neoliberalismo é Incompatível Com Democracia, Diz Mbembe 04/03/2024

Neoliberalismo é incompatível com democracia, diz Mbembe – 04/03/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Um dos mais importantes pensadores do mundo, o camaronês Achille Mbembe, de 66 anos, rejeita simplificações ao falar sobre as ruínas da geopolítica contemporânea.

Ele recorre à cosmogonia africana, com alegorias e imagens poéticas, para profetizar a invenção de um horizonte, oposto ao tempo presente, desmantelado pelas bombas que caem a cada minuto sobre Gaza e que está ameaçado pelas mudanças climáticas e pelo uso de novas tecnologias.

Mbembe anuncia a falência da preponderância ocidental, criticando o protótipo socioeconômico dominante no século 21. “Creio que o neoliberalismo é incompatível com a democracia liberal”, diz.

Professor de história e ciências políticas da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, na África do Sul, Mbembe é responsável de livros fundamentais para a teoria decolonial, uma vez que “Sátira da Razão Negra” e “Necropolítica”, ambos publicados no Brasil há seis anos.

Por cá, seu pensamento logo se espraiou na liceu e na prensa, se tornando uma chave para a compreensão dos dilemas históricos da sociedade brasileira.

O concepção de necropolítica faz referência ao poder das forças opressivas do Estado em sentenciar quem deve viver e quem deve morrer. No livro, Mbembe traça um quadro histórico, mostrando uma vez que a morte sempre permeou o cotidiano do povo preto.

Ele lembra a exploração escravista no sistema de “plantation” e usa a Palestina uma vez que um dos exemplos de necropolítica da atualidade. Seu progressismo, no entanto, se retrai quando indagado sobre uma provável solução de dois Estados. “O que você quer que eu diga? Minha voz não conta nessas questões. Essa questão me ultrapassa. Essa pergunta deve ser feita aos poderosos do mundo”, afirma.

De todo modo, o concepção de necropolítica não é inoportuno ao que acontece nas periferias daqui. Um estudo do Fórum Brasílio de Segurança Pública, em parceria com a UNICEF, aponta que 80% das mortes violentas de jovens, entre 2016 e 2020, eram de negros. Decerto, é um apagamento que se estende a subjetividades das relações raciais.

Em “Sátira da Razão Negra”, Mbembe descreve um processo de questionamento à centralidade do pensamento branco, sobretudo europeu, nas ciências humanas e nas representações artísticas.

Nesta segunda-feira, Mbembe dará uma aula-magna, que integra a programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp. Na entrevista a seguir, concedida por videoconferência, ele fala sobre o tema de sua lição, as relações entre democracia e internet, discorre sobre a identidade do Brasil, país que se reconhece a cada dia mais preto, e sobre a violência das guerras.

Uma vez que o uso das redes sociais pode afetar a democracia?

Acho que há uma enorme tensão entre a democracia e as redes sociais. Primeiro, porque o neoliberalismo é incompatível com a democracia liberal. E ainda há outra tensão, que devemos perceber, a premência de democratizar esse entrada a todas essas ferramentas de tecnologia.

Em que medida o senhor pensa ser necessário cada país reparar as suas legislações, a término de evitar a disseminação de fake news em sites de big techs?

Penso que essa não é uma discussão que deve ser resolvida unicamente no projecto vernáculo. As fronteiras dessas empresas estão em todos os lugares e não podem ser enquadradas de entendimento com a noção de Estado-nação. Penso que é preciso subsistir uma regulação transnacional, mas isso é muito complicado. As forças do mercado tendem a se autonomizar em relação às forças políticas.

Em sua obra, o senhor cita o exemplo da Palestina uma vez que um exemplo de necropolítica. Uma vez que avalia a situação em Gaza neste momento?

Cá, o governo da África do Sul foi até Haia exigir um cessar-fogo. Temos a experiência do apartheid, que foi totalmente único, mas mostrou que o recta à vingança não nos conduz exatamente à silêncio. A experiência sul-africana pode ser significativa para mostrar que os conflitos aparentemente intratáveis podem ter uma solução.

O senhor defende a solução de dois Estados?

O que você quer que eu diga? Minha voz não conta nessas questões. Essa questão me ultrapassa. Essa pergunta deve ser feita aos poderosos do mundo.

De que modo a ocupação de um território é medial para o treino da necropolítica?

Nossas vidas estão ligadas a um território. Para viver e subsistir, é preciso ter os pés em um solo. O território é o cordão umbilical, que nos liga à memória e ao horizonte. Se estamos presos em um território, estamos impedidos de edificar uma memória ou até mesmo reconhecermos nosso próprio nome.

Até que ponto o concepção de necropolítica explica a violência contra os jovens negros no Brasil?

É a maneira uma vez que lidamos com a vida. É preciso que o valor das vidas seja igual. E não falo só das vidas humanas. Falo dos animais e da natureza, ela própria. Venho da África e estou vigilante à cosmogonia. Para a população negra brasileira, creio que a necropolítica se traduz num sentimento de impossibilidade de se tornar ascendente.

Pouco a pouco, a população brasileira reconhece sua identidade negra. Por que tanta dificuldade histórica nesse reconhecimento?

Porque o significante “preto”, na história da modernidade, sempre foi o equivalente a zero. As pessoas não querem ser zero. As pessoas querem ser alguma coisa. A teoria de ser preto provoca muito temor nas pessoas.

A miscigenação é necessariamente negativa?

Não, mas a miscigenação histórica é resultado da violência, não da simetria. A miscigenação é o símbolo do encontro e os encontros sempre tiveram de ser negociados e devem ser construídos para o horizonte. A melhor construção é aquela que se desenvolve numa base de paridade, não sob o signo do estupro.

Em “Sátira da Razão Negra”, o senhor discorre sobre a representação artística. De que maneira devemos mourejar com uma legado artística que vê o preto uma vez que exótico?

Não devemos extinguir zero. Entretanto, devemos olhar tudo com novos olhos. Isso exige recontextualizar as expressões artísticas. É preciso, portanto, sempre vacilar das nossas faculdades críticas. Penso que uma das funções da arte contemporânea é furar os nossos sentidos. A prática artística deve reencontrar sua função libertadora.

Folha

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