Falar sobre “O Jardim de Algodão” não é simples. Não por culpa dos temas, linguagens, ilustrações, personagens ou relações criadas pelos autores no livro. A questão é que o lançamento de Tino Freitas e Ionit Zilberman guarda uma surpresa.
Mais do que isso, essa revelação muda toda a narrativa. E faz com que a gente tenha vontade de logo reencetar, passando a buscar nas entrelinhas e nas imagens as sutilezas que passaram despercebidas.
Por isso, revelar o término da história é um risco. É flertar com estragar a leitura, com diminuir o impacto dela.
Mas uma vez que apresentar “O Jardim de Algodão” sem descrever o seu desfecho, se é justamente nesse ponto que o livro desabrocha uma vez que arte, subverte as expectativas, coloca o leitor em xeque e questiona o status quo, sobretudo no Brasil carola, conservador e brucutu do século 21?
Talvez o melhor seja voltar ao início. Proferir que tudo começa com uma moçoilo narradora. Desde que a avó paterna morreu, ela vive com o avô viúvo, a mãe e o pai na mesma mansão, onde há um jardim zelo pelo idoso.
Até que essa moçoilo tem um sonho. E, com ele, brota um libido —o de vestir um vestido florido, tão recheado de pétalas quanto o quintal de onde mora.
A partir daí, a família se mobiliza. A mãe conta que tinha uma roupa parecida quando era rapariga e que a peça ainda deve estar guardada na mansão da outra avó. É simples que o vestido ainda está por lá e rapidamente é embrulhado uma vez que um presente.
Para ajudar na sarau, o pai pinta as unhas da personagem, uma de cada cor. E portanto chega o grande dia. Com todos ao volta da mesa, a moçoilo surge vestida com a roupa que tinha sido da mãe no pretérito.
Mais do que isso não é verosímil manifestar. Basta alongar que Tino Freitas e Ionit Zilberman desenvolvem uma narrativa elegante e afetuosa, na qual texto e imagem parecem costurados uma vez que flores de um mesmo galho, uma vez que fios de algodão que dão contornos à mesma peça. Um não existe sem o outro.
Enquanto as palavras de Tino fazem o leitor flutuar até o orgasmo, as ilustrações de Zilberman entregam a conta-gotas elementos fundamentais para a narrativa, uma vez que as dinâmicas raciais da família, questões de gênero e discussões sobre as liberdades da puerícia.
Liberdade, aliás, que anda cada vez reprimida —não à toa, todas as semanas vemos pipocar novos casos de increpação à literatura infantojuvenil, seja no Brasil, seja em outros países.
O mais recente por cá foi o de “O Menino Marrom”, clássico de Ziraldo que foi proibido nesta semana nas escolas municipais de Mentor Lafaiete, em Minas Gerais.
Posteriormente a gritaria de um grupo de pais, que acharam agressiva uma segmento em que os dois amigos da história prometem fazer um pacto de sangue, a Secretaria de Instrução do município resolveu retirar o título das salas de lição para supostamente fazer uma readequação da abordagem pedagógica. Vale manifestar que o tal pacto nem acontece. Os meninos acabam mergulhando o dedo num pote de tinta.
Mesmo assim, Ziraldo, que morreu em abril deste ano e teve papel fundamental na oposição à increpação e à ditadura militar, acabou se tornando o mais novo responsável censurado no país. Recentemente, nomes uma vez que Ana Maria Machado, Monteiro Lobato, Lygia Bojunga, Pedro Bandeira e tantos outros também tiveram livros proibidos pelos mais variados motivos.
Os motivos mudam, mas há alguma coisa em generalidade. Em todos, exclama a incapacidade de ver a literatura infantojuvenil não uma vez que um instrumento educacional e pedagógico, mas uma vez que obra de arte, uma vez que objeto que trabalha no campo das ambiguidades, em que personagens não são necessariamente modelos de bom comportamento.
Assim uma vez que ocorre em romances ou na trova, a literatura para crianças tampouco precisa ensinar coisa nenhuma. Não é obrigada a ter moral da história. Não deve ser um manancial de virtudes. Nela, o terreno também é o da liberdade.
O problema é que a liberdade tem sido cada vez mais usada uma vez que slogan de grupos que não têm a menor teoria do significado dessa termo —finalmente, basta nascer uma discordância para que eles logo mostrem a face troglodita da increpação, exibam os dentes afiados da violência e tentem impedir que os outros sejam efetivamente livres.
É por isso que deve ser celebrada a liberdade que transborda de “O Jardim de Algodão”. Uma liberdade cada vez mais rara. A liberdade da puerícia.
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