O Papo Da Meritocracia Não Funciona, Diz Alexandre Rampazo

O papo da meritocracia não funciona, diz Alexandre Rampazo – 25/05/2024 – Era Outra Vez

Celebridades Cultura

Alexandre Rampazo está de volta. Rodeado de estantes com espaços ainda vazios e caixas fechadas espalhadas pelo apartamento, o ilustrador voltou neste mês a São Paulo em seguida uma temporada de dois anos em Portugal.

“É aquela frase atribuída ao Tom Jobim, né. Morar fora do Brasil é bom, mas é ruim. Morar no Brasil é ruim, mas é bom”, diz Rampazo. “Tem toda uma questão de identidade e de não pertencimento. Lembro que um dia estávamos assistindo à televisão e começou um peculiar sobre a morte de um humorista português. Foi uma comoção pátrio, mas aquele luto coletivo não me dizia zero. Eu nunca tinha visto aquele rostro, não fazia secção da minha memória afetiva. E isso impacta.”

Mas não é só o responsável paulistano que acaba de retornar. Coraline, uma de suas personagens mais famosas, também está de volta. Sete anos em seguida protagonizar o já clássico “A Cor de Coraline”, a moça definida uma vez que “pensadeira” conduz agora uma história inédita. “Um Lugar para Coraline”, espécie de prolongamento do primeiro livro, chega às livrarias pela editora Rocquinho.

Não é que Rampazo tenha deixado de grafar e ilustrar durante a temporada lusitana. Uma vez que costuma ocorrer com diversos autores de literatura para a puerícia, seu trabalho é volumoso.

Nesse período, ele publicou no Brasil títulos uma vez que “Vai Rolar”, “O Que Você Vê”, que ganhou o selo Cátedra Unesco de Leitura, e “Silêncio”, vencedor do troféu da APCA, a Associação Paulista de Críticos de Artes, e segundo lugar no prêmio da Livraria Pátrio. Fora isso, ele acaba de lançar também “A Caixa”, parceria com a escritora Paula de Santis, que sai pela Peneira na Escola.

Mas a volta de Coraline é dissemelhante. O primeiro livro se tornou um marco em seguida o lançamento, em 2017. “O sucesso me assustou um pouco. Inspirou até um samba-enredo da Pimpolhos, a escola de samba mirim da Grande Rio. Não precisava mais de zero, né? A Coraline já tinha oferecido o recado”, conta. “Mas o tempo passou e as discussões sobre o que é ser preto no Brasil ficaram mais afloradas.”

“A Cor de Coraline” começa com uma pergunta feita por um colega da personagem: “Coraline, me empresta o lápis cor de pele?”. A partir daí, a narrativa é tomada por uma lesma de reflexões da moça, que aparece ilustrada por Rampazo sem cores definidas, fazendo com que o leitor não saiba qual é a cor de sua pele. Até que, no termo, descobrimos que a personagem é negra.

A revelação é necessária neste texto, porque o debate racial reaparece de maneira ainda mais profunda e complexa no novo “Um Lugar para Coraline”. Desta vez, a pequena participa de um campeonato de natação na escola. Com uma risca do tempo não linear e muito amarrada, a obra se divide entre os pensamentos da protagonista, a própria competição na piscina e os bastidores da vida dela no escola.

“Imagine uma rapaz que sai da escola, vai caminhando para lar, encontra o almoço em cima da mesa, come, dá uma cochiladinha e só depois começa a fazer a prelecção. Agora pense em outra que estuda no mesmo escola, mas precisa terçar a cidade de metrô e ônibus, cuidar do irmão mais novo em lar, esquentar a comida que a mãe deixou guardada e resolver um monte de coisas antes de estrear a estudar. Se colocar na balança, você vê que essa conversa de meritocracia não funciona”, diz o responsável.

Tudo isso ajuda a dar forma ao novo livro, mas de maneira estética e literária, sem didatismos pedagógicos já mastigados. Rampazo opta pelo caminho das metáforas e dos simbolismos para tocar nessas questões, que alcançam seu vértice numa das ilustrações de página dupla.

Nela, o leitor vê a piscina de cima, a partir de um ponto de vista alheado e vertical. Sete crianças estão nadando, cada uma em sua raia. Cinco delas são brancas, enquanto duas são negras —justamente as que ficaram um pouco para trás.

“Pra eu ser a melhor, tenho que ser melhor que o melhor duas vezes”, comenta Coraline no texto.

Embora a narrativa converse diretamente com discussões sobre a cor da desigualdade no Brasil, o quanto a vida em Portugal, onde casos de racismo e xenofobia contra imigrantes não param de crescer, influenciou a escrita da obra?

“As pessoas costumam definir o brasílico pelo samba, pelo bom humor, por ser um povo receptivo. Mas acho que não é zero disso. A gente é muito criativo. Tira qualquer problema da frente, acha solução para qualquer coisa. Mesmo que não saiba fazer, a gente se vira. Vi muito isso nos brasileiros em Portugal.”

Ou, uma vez que diria Coraline, é preciso “ser melhor que o melhor duas vezes”.


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Folha

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