Incluídos na lista de leituras obrigatórias da Fuvest, vestibular da USP (Universidade de São Paulo), os livros “O Cristo Cigano” (1961) e “Geografia” (1967), da escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, foram recentemente reunidos em um volume duplo.
A edição permite aos leitores reprofundar no lirismo militante e sofisticado da autora e apresenta algumas temáticas significativas em sua obra, porquê a tensão entre o clássico e o contemporâneo, o mar e o corpo, a subjetividade e as coisas.
Apesar de sua origem familiar aristocrática, Andresen atuou na resistência à ditadura imposta por António Salazar e seguida por Marcello Caetano em Portugal de 1926 a 1974, o mais longo período de um governo dominador da Europa.
Além de ortografar poemas de dura sátira política e social, a poeta foi candidata pela oposição em 1969 e ajudou a fundar a Percentagem Pátrio de Socorro aos Presos Políticos, entre outras ações. Com a Revolução dos Cravos, que deu término ao regime dominador, em abril de 1974, elegeu-se deputada na Plenário da República.
Seus livros e sua trajetória foram premiados e reconhecidos dentro e fora de seu país, inclusive no Brasil, referência topográfica e literária de muitos de seus poemas.
A trova de João Cabral de Melo Neto é visível em “O Cristo Cigano”, não em termos de estilo ou de prosódia, mas em seu diálogo com a percepção imagética e concreta do real. O martírio bíblico da figura lendária do messias se transfigura e humaniza na persona exagerado mundana do artista, um estatuário sem “pedra nem vegetal/ nem jardim nem flor” que lhe sirvam de protótipo.
Do admirado poeta pernambucano, que chegou a ortografar um poema para ela, Andresen se apropria da “termo faca/ de uso universal/ […] azul e afiada/ no gume do poema”. Uma faca só lâmina, “fervorosa e energética”, “faca metáfora”, que dentro do varão (e da mulher), lhe dá maior impulso para a ação. O poema corta e nos move, porquê o machado de Franz Kafka.
“Geografia” é uma coleção um pouco mais alentada de poemas. Divididos por seções topográficas, por assim manifestar, suas paisagens ganham uma dimensão interna, no corpo e na memória, mas muito concreta. Cada experiência, sentimento, memorandum, tem sua correspondência em lugares, objetos, percursos, tempos, palavras: o mar, a mansão, o Golfo de Corinto, o Brasil, um caminho qualquer, a resistência ao fascismo.
Acercar-se do real com a linguagem não se limita a um tirocínio retórico para a poeta. Em vez disso, dá-se porquê uma consumição sensível, corpórea, do cenário tocado pelos versos, porquê se tateia uma pedra, uma árvore, um verso: “é a minha vida/ a fundíbulo a secreta/ com sabor a pedra/ e perfume de vento”.
Da Grécia mitológica a Brasília —”desenhada por Lúcio Costa, Niemeyer e Pitágoras/ lógica e lírica/ grega e brasileira”—, passando por uma homenagem a Manuel Bandeira, outro pernambucano com quem Sophia se conecta poeticamente, os poemas de “Geografia” mostram que as paisagens são extensões de nossos corpos em travessia, movimento, construção. Não estamos fora da paisagem porquê meros passantes e, com sorte, de forma contemplativa. Ela se constitui, porquê sentido e força, com a nossa presença.
O estatuário de “O Cristo Cigano” materializa o intáctil de sua pulsão criativa no perímetro palpável de um objeto, uma forma reconhecível, alguma coisa que o abandona. Por outro lado, em “Geografia” a voz do eu lírico transita por paisagens de tempos e espaços diversos. Sabemos que o corpo, seus desejos e sua história são feitos da “terreno, o sol, o vento, o mar”, que o seu mundo interno “é uma atenção voltada para fora”, que seu “viver escuta”.
Escuta é inclusive título de um poema deste segundo livro, porquê se indicasse uma espécie de metodologia poética de introdução para o entorno, o outro, o pretérito e o novo. Exórdio para a transformação de uma sociedade opressiva —porque a termo corta o véu do poder—, da hipocrisia, da trivialidade do mal.
Num texto sobre arte poética, Andresen diz que “a trova é minha explicação com o universo, a minha convívio com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”. Veja que a explicação é “com” e não “de”.