Orwelliano Ou Kafkiano: O Que Significam Estes Adjetivos E Quem

Orwelliano ou kafkiano: o que significam estes adjetivos e quem eram os escritores por trás deles – 08/07/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Existem grandes escritores que, além de nos contarem histórias inesquecíveis, conseguem sintetizar filosofias, visões ou situações de forma tão significativa que seus nomes se transformam em adjetivos.

Se alguma coisa é espantoso, infernal ou pavoroso, é dantesco —uma vez que em “A Divina Comédia”, o livro do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321). Se alguém age com astúcia e perfídia para atingir seus objetivos, é maquiavélico —ou seja, ele segue os conselhos de outro italiano, o filósofo político Nicolau Maquiavel (1469-1527), no livro “O Príncipe”.

E um ideólogo, que trabalha desinteressadamente pelas causas que acredita serem justas, pode ser quixotesco —uma vez que Dom Quixote, o imortal personagem do redactor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616).

Além destes e de muitos outros, os sobrenomes de dois importantes escritores do século 20 também se transformaram em adjetivos. Suas ideias trazem tanta sonância para o mundo atual que essas palavras são usadas com muita frequência —e, às vezes, erroneamente.

Um deles é Franz Kafka (1883-1924), nascido na Boêmia, hoje República Tcheca. O outro é o britânico George Orwell (1903-1950). Os dois escritores forneceram um planta, um sinopse e uma mensagem para nascente século.

Eles previram a geração do Twitter, do Zoom e dos reality shows de TV, sem falar nos smartphones e na permanente vigilância, além da sofreguidão induzida pelo Estado e da crescente sensação de insuficiência frente a forças dificilmente identificadas.

Por isso, um século depois da morte de Kafka e mais de 75 anos depois da publicação de “1984”, de Orwell, os epônimos decorrentes dos dois autores são cada vez mais apropriados para descrever alguns dos piores aspectos dos tempos atuais.

Mas os autores e suas distopias são díspares. E, para não confundir o que é kafkiano com orwelliano, o melhor é consultar os especialistas: Carolin Duttlinger, codiretora do Núcleo de Investigação Kafka da Universidade de Oxford, no Reino Uno, e o redactor David J. Taylor, biógrafo de Orwell.

Os epônimos

Quando dizemos “kafkiano”, estamos nos referindo a uma profunda sensação de que alguma coisa não está muito, de culpa e acusações incompreensíveis que não levam a lugar qualquer.

“Na ponta mais sinistra do espectro, trata-se de instituições invisíveis que rastreiam e perseguem você”, afirma Duttlinger. “Mas também acredito que ‘kafkiano’ tem componentes mais surrealistas e ligeiramente satíricos, de humor preto: o sentido do contra-senso da vida cotidiana.”

Ácido ou não, o humor de Kafka é menos óbvio para quem não lê o redactor no original, em teutónico.

“Para mim, é uma lástima que as pessoas pensem que Kafka só tem a ver com pesadelos e histórias realmente obscuras, porque as partes boas são perdidas”, lamenta Duttlinger. “Seu humor talvez seja um paladar adquirido, mas ele certamente está presente no contra-senso de um varão que tenta encontrar sentido em uma situação totalmente indecifrável… isso é muito risonho.”

Já em relação a Orwell, Taylor afirma que “‘orwelliano’ pode valer qualquer coisa que você queira que signifique”. Para ele, “Orwell é tão onipresente no nosso mundo atual que a termo ‘orwelliano’ pode nomear praticamente qualquer pessoa que tenha qualquer tipo de reclamação contra a poder”.

“O significado exato que eu daria é de um mundo ou cenário no qual qualquer tipo de espírito individual é rotineiramente suprimido por uma poder vigilante, que tudo vê e é tecnologicamente capacitada.”

Por isso, quando qualificamos alguma coisa uma vez que orwelliano, não nos referimos a toda a obra do redactor britânico, mas a dois livros específicos: a sátira antiutópica “A Revolução dos Bichos”, de 1945, e a apavorante distopia “1984”, de 1949.

Em relação a 1984, a mensagem contra o totalitarismo, que impressionou seus leitores de forma tão profunda, impregnou o imaginário cultural uma vez que muito poucas obras conseguiram até hoje.

“‘Orwelliano’, aplicado ao mundo de ‘1984’, trata da negação da verdade objetiva, da supressão das liberdades individuais pela manipulação da linguagem e do olhar tecnológico —esta espécie de teoria miltoniana de penetrar uma janela para as mentes dos homens, quer eles queiram ou não”, diz Taylor.

No caso de Kafka, seu romance “O Processo”, publicado postumamente em 1925, contém a núcleo kafkiana. O termo se tornou sinônimo das ansiedades, da sensação de desatino da era moderna e da luta de uma pessoa geral contra uma poder irracional e irrazoável.

Caso você tenha esquecido ou não tenha lido os romances, cá está um rápido resumo das duas obras:

“O Processo” conta a história de um varão chamado Josef K. Ele vive em Praga, onde é recluso e julgado por um transgressão incógnito, em um sistema jurídico contra-senso que parece um pesadelo.

“1984” é ambientado na Oceania, com um Estado totalitário que fez lavagem cerebral da população, para que ela obedeça irracionalmente seu líder, o Grande Irmão (ou Big Brother). O romance acompanha o protagonista Winston Smith, que tenta se rebelar secretamente contra o regime opressor, que a tudo observa.

O fracasso

É simples que não devemos considerar que Winston Smith —o personagem principal de 1984— é, de alguma forma, similar ao seu pai, George Orwell. Mas será que existe alguma coisa do próprio Orwell que pode nos ajudar a entender a visão orwelliana?

“Orwell acreditava profundamente no noção de fracasso —no seu próprio fracasso pessoal e no fracasso de quem se atravesse a questionar o Estado e as reverências do Estado”, responde Taylor. “Por isso, todos os seus romances, incluindo os realistas da dez de 1930, tratam de pessoas que fracassam.”

“Eles têm o herói que se rebela contra o sistema e, por um momento, o sistema absorve um pouco dessas rebeliões para depois o esmigalhar. Em 1984, Winston Smith é simplesmente submetido pelo sistema.”

“O que Orwell quer mostrar é a absoluta inutilidade de se pensar que é verosímil conseguir alguma coisa”, explica ele. “E acredito que, desde o princípio, o leitor sabe que a rebelião está condenada ao fracasso.”

O final do romance é particularmente deprimente, já que não existe uma grande dramatização. Smith simplesmente termina na mesma cafeteria onde começou.

“Uma vez que sempre acontece na ficção de Orwell, houve um pequeno reajuste”, explica Taylor. “Coisas aconteceram, mas você essencialmente volta mais ou menos para onde estava.”

“E, para dar nascente toque biográfico, ele coincide com a visão que Orwell tinha de si mesmo”, prossegue o estudioso.

“Certa vez, ele produziu um aforismo totalmente deprimente, dizendo que a vida humana, de forma universal, é uma sucessão de fracassos e que somente os muito jovens ou muito tolos acreditam no contrário. De forma que a psicologia dos Estados totalitários de Orwell, acredito eu, está intimamente relacionada com a sua própria psicologia pessoal.”

Tudo isso, mesmo com seu grande sucesso —e não somente no campo literário. George Orwell trabalhou na BBC, onde foi muito querido e aclamado uma vez que inovador nas suas produções. Ele pediu deposição para voltar a grafar. No documento solene de sua saída, seu gerente disse:

“É impossível exagerar a qualidade do seu caráter ou dos seus sucessos. Sua honra moral é única. Seu paladar literário e artístico é infalível. Ele sai por vontade própria, para tristeza de todo o departamento.”

Três meses depois, Orwell já havia terminado o primeiro rascunho de A Revolução dos Bichos.

O sucesso

Voltando agora para Kafka, o que haverá do redactor em Josef K., o confuso protagonista de O Processo? A julgar por algumas das cartas que enviou à sua prometida —a escritora Felice Bauer (1887-1960)—, a visão que Kafka tinha de si próprio não era muito favorável. Ele se descrevia uma vez que “irritável, triste, taciturno, insatisfeito e doentio”.

“Um varão que —e isso irá parecer para você similar à loucura— está encarcerado por correntes invisíveis a uma literatura invisível e grita quando alguém se aproxima porque pensa que estão tocando nessas correntes.”

Estaria ele sendo duro demais consigo mesmo? “Estas cartas são muito interessantes, mas não são evidências confiáveis”, afirma Duttlinger.

“Se você ler todas elas, verá que ele começa vendendo a si mesmo —e é, realmente, um varão muito simpático, no sentido de que ele a ouve, preocupa-se com ela e a incentiva em suas diversas atividades— até determinar que ela não é a pessoa indicada para ele”, diz.

“Mas, em vez de romper o compromisso, ele começa a pintar a si mesmo desta forma incrivelmente desfavorável.”

Kafka escreveu suas obras durante os últimos dias do predomínio dos Habsburgo. Ele era um corretor de seguros enredado em uma enorme burocracia, fazia segmento de uma família relativamente próspera e tinha um pai dominador.

“Seus pais eram incrivelmente trabalhadores”, diz Duttlinger. “Seu pai havia desenvolvido na pobreza extrema em uma cidade da Boêmia e abriu os caminhos com sua mãe.”

“Eles se mudaram murado de cinco ou seis vezes nos primeiros anos da vida de Kafka, até que, em Praga, eles tiveram sua própria loja, onde ambos trabalhavam seis dias por semana”, diz. “Quase nunca estavam em moradia, mas nascente tipo de espírito de esforço é encarnado por Kafka, em grande segmento, e também é observado no seu personagem, Josef K.”

Para ela, “é interessante que tenhamos falado do fracasso em relação a Orwell, pois acredito que Kafka, em patente sentido, é obcecado com a noção de sucesso”. Mas uma vez que seria nascente sucesso?

“Josef K. é um jovem em subida”, explica ela. “Não está por cima, mas está comodamente supra da média e gosta de usar o seu poder. Ele faz os clientes esperarem na lajeada, existem jogos de poder com seu gerente inopino e assim por diante.”

“Em grande segmento, O Processo também é um romance sobre essa psicologia moderna, talvez masculina, de rivalidade, de ocupar seu lugar etc.”

A verdade

Agora, o momento da verdade para os especialistas: qual será a opinião deles sobre os adjetivos “kafkiano” e “orwelliano”?

“Não costumo usar nenhum dos dois”, responde Duttlinger. Mas ela acha interessante que as pessoas façam isso. “Claramente, eles são uma boa forma de falar um estado de espírito ou experiência específica de forma sucinta e, neste sentido, são muito úteis.”

No caso de Orwell, Taylor indica que o adjetivo é muito usado porque “uma vez que as frases têm disseminação muito ampla —temos programas de televisão sobre o Quarto 101 [de 1984] e o Big Brother—, existe uma consciência coletiva sobre ele que transcende qualquer obra que ele tenha escrito”.

“Sociedades inteiras conhecem Orwell de segunda mão e, se você mencionar seu nome, alguém com formação média sabe de quem você está falando, mesmo que não tenha lido o livro.”

Para Duttlinger, “outra razão do grande sucesso de Kafka é a incrível simplicidade do seu estilo, a grande nitidez com que ele escreve”. Levante tipo de prosa direta, que transmite a mensagem da forma mais transparente, também é associada a Orwell. E as visões dos dois autores podem ser consideradas complementares.

Mas não devemos olvidar que, em um sistema kafkiano, a verdade zelosamente protegida não pode ser alcançada. E existem inúmeros obstáculos criados para impedir o chegada aos fatos.

Um personagem kafkiano pode passar a vida toda envolvido em tarefas inúteis que devem ser completadas, rumo a um objetivo indefinido. E os governos ou organizações kafkianas são comicamente tão ineptos que parecem quase fantásticos.

Já em uma sociedade orwelliana, a verdade é manipulada em nome do poder. Um personagem orwelliano é sempre vigiado – física, social, emocional e intelectualmente. Os regimes orwellianos são entes poderosos e invisíveis, que impõem rigorosos controles e falsificam a verdade, transformando o livre vontade em uma ilusão. Por isso, o líder é adorado, mesmo sendo nefasto.

O kafkiano é contra-senso. O orwelliano é uma falácia.

Folha

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