Há quem defenda que o romance moderno pode tomar um de dois caminhos: o que segmento do “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes ou o que segmento do “Robinson Crusoé” de Daniel Defoe.
O primeiro é o do romance em procura de si mesmo, ou seja, aquele que interroga claramente os próprios meios, sentidos e limites. O segundo é sobretudo realista; é aquele que cria, e tem pretensão de sustentar, a ilusão romanesca. Paul Auster, que morreu nesta terça, não só tomou os dois caminhos uma vez que conseguiu uni-los.
Nascido em Newark uma vez que Philip Roth, com quem guarda algumas semelhanças —entre elas a preferência por personagens envolvidos com a literatura—, Auster foi um jornalista prolífico que transitou muito muito entre os gêneros, escrevendo, além dos famosos romances, trova, não ficção e roteiros de cinema.
O responsável ainda é muito lembrado por um de seus primeiros trabalhos, “A Trilogia de Novidade York”, de 1987, formado por três novelas interconectadas.
Inventiva e intricada, a trilogia subverte os elementos e situações mais clichês dos romances de detetive —sem permanecer devendo zero aos latino-americanos Roberto Bolaño, Ricardo Piglia ou Mario Levrero, mestres nesse tipo de renovação— para tratar de perspectiva, de linguagem e de versão. Pela influência que continua a exercitar, e pelo próprio lugar médio que ocupa na produção de Auster, a trilogia ainda é um bom ponto de partida para se saber o responsável.
Uma das novelas da trilogia, “Cidade de Vidro”, traz um protagonista jornalista. Para ele, o interessante nas histórias que compunha “não era sua relação com o mundo, mas sua relação com outras histórias”. É exatamente aí que Auster toma, entre Cervantes e Defoe, o caminho do meio: sua histórias têm relação tanto com outras histórias —e com a linguagem das quais dependem— quanto com o próprio mundo.
É nessa formosa intersecção que Auster se encontra: sua intenção não é embuçar, mas invocar a atenção do leitor para os limites da literatura, e portanto da própria linguagem, quando se trata de descrever ou dar sentido à experiência concreta.
E essa experiência dá origem aos temas recorrentes nos seus livros: a memória, o envelhecimento, a solidão, a identidade e as maneiras de construi-la e renová-la, o alcance ou mesmo a ilusão do livre-arbítrio.
Há ainda temas menos óbvios, de que raramente se fala: no magnífico livro que reúne as cartas que trocou com J.M. Coetzee, “Here and Now”, Auster disse que procurou tratar da amizade entre homens em mais de um livro, sobretudo em “Leviatã”.
É importante frisar que, para Auster, as palavras não são janelas enormes e transparentes situadas entre alguém e o mundo: há “ocasiões em que o vidro fica um pouquinho sujo”, uma vez que escreveu. Pode parecer paradoxal, mas a crença de Auster —renovada a cada livro— é a de que o potencial da literatura pode ser ampliado, ou até embelezado, quando se reconhece e se discute seus limites.
Auster não era oferecido a grandes voos estilísticos uma vez que um Donald Barthelme ou um David Foster Wallace, embora pudesse trebelhar com a forma. Um de seus últimos trabalhos é o calhamaço “4321”, em que o leitor pode escoltar quatro trajetórias diferentes para um mesmo protagonista, Archie Ferguson —e que, fiéis a uma questão recorrente nos livros de Auster, dependem tanto do eventualidade quanto das escolhas, boas e más, de Ferguson.
Mas o jornalista podia tratar de temas muito concretos. No núcleo do autobiográfico “Quotidiano de Inverno”, por exemplo, está o corpo —e o que comanda o curso do livro é a mente reconhecidamente “associativa e hiperativa” de Auster.
Não é nenhuma surpresa que um responsável tão sengo aos mecanismos da linguagem também tenha escrito trova —no Brasil, a Companhia das Letras publicou a edição “Todos os Poemas”, em bela tradução de Caetano Galindo.
O próprio Auster era um grande leitor de, entre outros, Charles Simic, Elizabeth Bishop, Robert Lowell e Marianne Moore. Ele acreditava, porém, que nos últimos anos havia pouca coisa digna de nota sendo escrita. “Ninguém mais acredita que a trova (ou a arte) pode mudar o mundo. Ninguém está em uma missão sagrada”, escreveu a Coetzee.
Parece uma qualidade estranha e anacrônica, essa da missão sagrada, mas a trajetória literária de Auster —um pouco, aliás, que compartilha com o próprio Coetzee— de vestuário a envolveu. Saber o que podemos expressar e o que não podemos, e de quais maneiras, e com que formosura e com que perdão— eis a missão sagrada de Auster.