A oralidade foi um dos principais instrumentos de preservação da história de afrodescendentes no Brasil. Foi por meio da voz, das cantigas e dos contos que maiores trazidos de África tinham seu legado pretérito às novas gerações.
Registrados em cartas, documentos e livros, muitos desses relatos deram origem ao podcast “Projeto Querino”, que virou o livro-reportagem homônimo lançado pela Fósforo nesta terça (3) em São Paulo.
Escrita pelo jornalista Tiago Rogero, de 36 anos, a obra registra agora em papel a centralidade do povo preto na construção do país e mostra porquê a escravidão foi primordial para o desenvolvimento de uma sociedade estruturada na discriminação racial.
O nome é uma homenagem ao intelectual baiano Manuel Raimundo Querino (1851-1923), que em 1918 publicou o livro “O Colono Preto Uma vez que Fator da Cultura Brasileira”, que trata do protagonismo dos africanos e seus descendentes na formação do Brasil.
“Embora eu saiba que deveria ter um público-alvo solicitado, queria que o livro chegasse a todo mundo. Mas minha prioridade é que ele chegue às pessoas negras que tenham interesse sobre a história, ou que talvez ainda nem saibam que têm esse interesse, mas, à medida que forem lendo, isso possa aflorar”, diz em entrevista à Folha.
Segundo Rogero, que hoje é correspondente do jornal britânico The Guardian na América Latina, grande secção do público ouvinte do podcast da Rádio Novelo é formada por pessoas brancas, e o retorno que recebe nas redes sociais é equilibrado entre brancos e negros.
“Eu acho ótimo que uma maioria branca leia, até porque o racismo é um problema delas, para elas resolverem, porque são elas que se beneficiam disso. Mas o retorno que me emociona é quando uma pessoa de escola pública, talvez sem uma formação acadêmica, é alcançada”, afirma.
Esse sentimento se reflete na linguagem do livro, “sem academiquês, para que possa ser um livro popular, no melhor sentido da frase”.
Rogero diz ter dois motivos principais para transformar o podcast em livro. O primeiro foi o tamanho da pesquisa.
“É sempre bom lembrar que o projeto é majoritariamente feminino e um esforço coletivo, mais de 40 profissionais trabalharam nele até 2022. A gente produziu muito mais pesquisa e informação do que foi ao ar”, aponta. “O motivo menor é meu sonho de jornalista de grafar um livro.”
Ao todo, foram dez meses de apurações, mais de 50 entrevistas, 42 horas de gravação e 14 milénio quilômetros rodados em viagens pelo país.
Embora carregue o nome e a núcleo do podcast, o livro não é uma simples transcrição do áudio, mas aprofunda discussões e traz novas informações, além de ajustar abordagens.
Isso acontece, por exemplo, no terceiro capítulo, “Chove Chuva”, sobre cantores e artistas negros brasileiros ao longo da história. O jornalista escreveu um texto muito próximo ao do podcast —quem já escutou a produção da Rádio Novelo consegue imaginar a voz de Rogero contando a história.
No entanto, a procura por se aproximar da linguagem cotidiana trouxe desafios. Se o sotaque mineiro e o uso de coloquialismos aproximavam o ouvinte no áudio, no livro a estratégia foi adaptada. Rogero abriu mão de algumas expressões, manteve as frases curtas e a opção por palavras simples.
Outra marca de oralidade do livro é o tempo espiralar, no concepção de Leda Maria Martins. As histórias não seguem uma ordem cronológica em que pretérito, presente e porvir estão separados e organizados linearmente. Para culturas de matriz africana e indígena, esses tempos se encontram, conversam entre si e se influenciam, assim porquê na narrativa apresentada pelo jornalista.
“Na prática, acredito que essa construção secção do vestuário de eu ser um jornalista e me sentir mais confortável trabalhando no presente. Quando me proponho a investigar, o jornalismo se encontra com o trabalho do historiador, e assim se dá essa construção”, afirma Rogero.
Ele observa que, embora tenha uma abordagem histórica, “Projeto Querino” ainda é um livro-reportagem. Por isso, ele optou por terebrar mão das regras de referências bibliográficas para referir outras obras. “Na primeira versão eu percebi que estava brincando de acadêmico, com muitas referências e citações, e perdia uma das características, que é a fluidez.”
Preto de pele clara e fruto de uma família miscigenada, Rogero conta ter desenvolvido sem entrada a discussões raciais —mesmo assim, se arrepiava na puerícia ao som de “Identidade”, de Jorge Aragão, cuja letra parece conversar com os caminhos seguidos pelo agora plumitivo: “Somos legado da memória/ Temos a cor da noite/ Filhos de todo vergalho/ Indumentária real de nossa história”.
Ao escutar sua conterrânea mineira Conceição Evaristo manifestar que “ensinam a Revolta Farroupilha, mas não a Revolta dos Malês” nas escolas, quando conheceu a escritora no Rio de Janeiro, um tanto despertou o interesse do jovem a saudação da influência negra na construção do país.
Foi essa a primeira faísca do projeto que hoje prova que “existe uma história do preto sem o Brasil, o que não existe é o uma história do Brasil sem o preto”, porquê afirmou Januário Garcia.