A contenda vive no coração amargurado insone dos contendores.
No caso, estou falando da cebola, mesmo.
Não existe motivo pequeno o suficiente pra ser retirado com um gesto de mão num balcão de bar.
Eu tentei — mas já era tarde.
A minha pergunta singelo iniciou a confrontação:
— O que é isso cá em cima do queijo?
Apontei pra uma torradinha, sobejo frágil pro conjunto de queijo de cabra que se equilibrava sobre ela, detrás da vitrina onde se enfileiravam “montaditos”. Encarapitado sobre o queijo, um montículo marrom escuro.
Que eu imaginei que seria uma geleia ou sei lá. Tava caçando matéria, gente.
— Cebola confitada — o rostro à minha esquerda se adiantou ao possuidor do bar, que já abria a boca pra me responder, de má vontade.
Tudo nesse cara-ao-lado me transmitia o conforto do habituê, senão daquele bar, de bares vários: o corpanzil esparramado sobre o balcão de madeira caramelo meio grudento, meio envernizado; a taça de vinho com a garrafa do lado, um bom vinho, por sinal, com uma “tapa” pegando vento; e a intromissão em conversa alheia.
O bar era simples, uma dessas bodegas de bairro que ainda sobrevivem em Barcelona. Tão simples, aliás, quanto enxurro de estrelinhas em guias de viagem. Talvez porque um dia um chef Michelin disse que o lugar era tamanho e um de seus preferidos no mundo.
NO MUNDO, gente.
Daí eu ali, ou não.
— Não é confitada, é CA RA ME LI ZA DA — corrigiu, o possuidor, jubiloso, encarando o freguês. Irritado comigo, com ele, contigo e com a poha da cebola.
Eu deveria ter parado, mas não.
— E qual é a diferença?
Os dois se entreolharam. O do meu lado disparou, tipo participante de quiz em programa do Silvio Santos:
— A caramelizada leva açúcar, tem que estar muito caramelizada mesmo e outrossim depois de uns xx minutos tem que ser reduzida com vinho ou cerveja ou o álcool que você quiser. Eu faço com vinho do porto.
Sublinhou essa última frase encarando o possuidor do bar, reptador.
A essa fundura, eu já tinha me convertido numa mera observadora. Amigos e namorildos sempre se queixaram: eu sou perita em botar lenha no cofrinho e depois permanecer só de torrinha, uma vez que se não fosse comigo.
Antes de seguir com esse relato assaz emocionante, gostaria de observar que (((ninguém me falou, mas pressinto, e outros espanhóis de diferentes cepas me disseram))) que a cebola é uma instituição espanhola.
Não com maiúsculas, uma vez que a Paella ou o Flamenco, a Tortilla de Patatas ou o Julio Iglesias (hein?).
E, sim, com letras pequenas e humildes e transversais, dessas que entram em cada mansão e cada pueblo, em cada sofrito, sanfaina e tortilla; que se multiplicam em versões apócrifas e receitas várias, e das quais cada pessoa bicho vegetal abuela sobre la Península Ibérica sente ter recta originário de se apropriar.
(Influência arábico, mesopotâmica ou neandertal, simples, vamos pular a segmento de que a cebola é um dos vitualhas mais ubíquos e antigos do mundo)
O dono-da-bodega voltou a me encarar e, hombresplaining, acentuou muito as palavras:
— Minha cebola confitada não leva zero — reparem no pronome possessivo. — Só uma pizca de sal e muita paciência. Os açúcares próprios da cebola são suficientes. O sigilo é esse: pa ci ên-cia.
E, sem costurar mais palavrinha ou palavrão, assentou a polêmica torradinha sobre um pratinho branco e botou diante de mim.
Estava boa, estava incrível.
***
Eu deixo cá um vídeo no instagram em que eu explico uma vez que se pode preparar a cebola confitada, as diferenças em relação à caramelizada e um truquinho pra apressar o processo — que, de outra forma, de contrato com alguns chefs e pseudochefs, poderia levar até 45 minutos.
(Ps: tem gente que inverte os nomes, e gente que voto que são a mesma coisa. O que importa é fazer, provar e amar.)
Uma vez que o boteco supra, a cebola caramelizada ou confitada é tão simples quanto genial, e serve pra escoltar tudo e exaltar qualquer prato, de torradinhas a carnes, tortillas, peixes, verduras, purês, hummus, queijos, foie gras, sopas, cremes, vida chata etc.
Por último, uma vez que às vezes faço em temas culinários, recorri ao meu sogro español-catalán pra esclarecimentos e inspiração. Ele num é possuidor da verdade, mas cozinha muito à beça. Transcrevo, traduzido e na íntegra, o que ele me disse.
“Minhas cebolas:
A primeira coisa é o objetivo final: o golpe da cebola é importante. Incisão em juliana para cebolas, carnes, peixes, golpe muito pequeno para molhos de tomate, arroz etc.
Segundo: óleo de oliva generoso — você sempre pode retirar o excesso no final do decocção — e aquecer lentamente ou muito lentamente. Não tem problema que fique tampada (a panela) no início até que a cebola perda a textura. Portanto, destapada e por um bom tempo.
Terceiro: O final tem dois pontos possíveis. Um quando as cebolas ficam transparentes, para poder aditar carnes ou outras coisas.
Ou você pode continuar até obter uma coloração tostada. Sabor muito desse ponto para molhos e bolonhesa. É o momento em que você pode aditar um pouco de vinho ou um outro álcool, o que quiser pra dar um sabor — o álcool queima e a cebola fica caramelizada. Nunca coloco açúcar, a própria cebola já tem seus carboidratos para caramelizar.
Quarto: em qualquer um dos dois pontos você pode aditar tomate ou outros vegetais para divertir com os sabores que más te apetezcan.
Resumindo, não existe guia… paciência, e o ponto final você mesma escolhe.
Besotes,”