Quando a Feira do Livro Infantil de Bolonha terebrar as portas na segunda-feira, dia 31, ainda vão faltar duas horas para o sol nascer em Muzambinho, no interno de Minas Gerais. Mas, mesmo com os quase 9.500 quilômetros de intervalo, quem visitar o evento no setentrião da Itália, um dos mais importantes encontros sobre literatura infantojuvenil do mundo, também vai se sentir um pouco nessa cidade brasileira.
Pelos corredores da feira, milhões de livros e tapume de 1.500 exibidores de 90 países vão dividir espaço com ilustrações cheias de formas e curvas que lembram árvores, bichos, flores e toda uma estética que dialoga com uma certa identidade brasileira. As imagens são assinadas Bruno de Almeida, ilustrador muzambinhense convidado para desenvolver a identidade visual da feira deste ano, onde também vai lançar o seu primeiro livro: “Gambiarra”, publicado pela editora Solisluna.
“Não quis gerar um estereótipo, ando cansado disso”, conta o ilustrador, que diz ter procurado fugir dos clichês brasilianistas e daquele pouquinho de Brasil, iá iá. “Sempre vejo Minas Gerais representada por morros e casinhas, uma vez que se fosse um quadro da Tarsila do Amaral. Só que isso faz século anos. Hoje você chega em Muzambinho e vê plantações com drones, entendeu?”, continua Almeida, que desde 2022 mora em Portugal.
A mudança para o outro lado do Atlântico, aliás, foi o que ajudou a transformar o seu olhar em relação ao Brasil e aos significados de uma estética brasileira. “Não tem jeito, a intervalo faz você pensar sobre o seu próprio país. Ainda mais em Portugal, que mantém um pensamento colonial e nos diminui uma vez que brasileiros. Às vezes, tenho a sensação de que seria melhor ser estrangeiro em outro lugar. Mas, ao mesmo tempo, estou dentro de uma universidade portuguesa e usando a ilustração e o design para falar sobre essas questões. É bagunçar as coisas por dentro.”
Há três anos, Almeida se mudou para Porto, em Portugal, onde concluiu um mestrado sobre a relação entre o design e o pensamento de Ailton Krenak, repórter indígena brasiliano e colunista da Folha. De lá para cá, ganhou quase uma dezena de prêmios e foi selecionado em diferentes concursos, entre eles o da própria Feira de Bolonha, mas também do Parlamento Europeu e do Museu do Aljube, em Lisboa, que guarda a memória da resistência à ditadura portuguesa.
Se essa olhadura transatlântica para o Brasil aparece em vários dos seus trabalhos, ela grita ainda mais cimalha em “Gambiarra”, livro de estreia do ilustrador. Feita quase sem palavras, a obra transforma a bicicleta numa espécie de símbolo do país. Pelas páginas, bikes equilibram vassouras, camas, peixes, galinhas, varais, cabras, televisões. Tudo é meio improvisado e bailarino, no fio da navalha e cromatizado, repleto de objetos e personagens que brincam de lucrar novos significados. E é exatamente aí onde mora a venustidade.
As ilustrações mostram dezenas de gambiarras, mas elas não soam uma vez que um tanto negativo nem uma vez que sinônimo de jeitinho malandro. Na verdade, são uma homenagem à originalidade, à liberdade, à imaginação, à adaptação, à procura de novos significados e à não conformidade com as regras impostas. “‘Gambiarra’ é um livro indisciplinado para crianças desobedientes que querem revolucionar o mundo”, define o responsável.
Lançado no Brasil no término do ano pretérito, o livro agora vai ser publicado na Itália —e com mais uma insubmissão. Na edição, o título não será traduzido. “Fiquei feliz de ler ‘Gambiarra’, assim mesmo, na cobertura italiana. Queria esse estranhamento, ver essa vocábulo brasileira circulando”, conta. “Acho que meu papel é contribuir com o diálogo global, mas a partir do meu ponto de vista, que é lá de Muzambinho.”
De certa forma, esse olhar é o mesmo que aparece nas imagens da Feira de Bolonha. Para gerar as ilustrações, Almeida conta que partiu da saudade de lar e de conceitos uma vez que as cosmologias das florestas. A partir daí, nasceram imagens nas quais curvas se tornam braços, pernas, árvores, flores, ninhos, skates. As formas se cruzam e se emaranham de tal maneira que fica difícil saber onde começa uma coisa e termina a outra. Tudo está interligado, uma vez que numa floresta.
“Acho que ‘Gambiarra’ e as imagens de Bolonha falam dos mesmos temas. Os dois têm ecossistemas interconectados e coletivos. A diferença é que um traz a floresta, o outro faz isso com as bicicletas.”
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