Um livro que percorre a história da retrato no mundo arábico e, ao mesmo tempo, reflete sobre os processos de construção do olhar parece inicialmente se adequar mais ao gênero tentativa do que ao romance biográfico. Entretanto, é com grande interesse e potente comoção que o leitor percorrerá “Biografia de um Olho”, de Ibrahim Nasrallah, que a editora Tabla lança com tradução de Safa Jubran.
Nasrallah, um dos mais importantes autores árabes de sua geração, nasceu em Amã, em um campo de refugiados palestinos expulsos pela Nakba. Neste romance, que integra a sua “Trilogia dos Sinos”, conseguiu a façanha de confederar a história uno da vida da fotógrafa Karima Abbud a uma inspiradora reflexão estética sobre a geração de imagens.
Se no início do livro Abbud acredita que “cada fotógrafo tem o seu próprio sol em seus olhos” e que as famílias se deixam fotografar “arrebatadas pela capacidade da retrato em manter seus filhos crianças”, com o passar dos anos a retrato passa a ser o seu espaço vital, e uma asseveração contundente do valor de cada vida.
A vida que o livro narra, em tom às vezes fabular e cristalino, contrasta com o peso das tragédias que vão transformando a Palestina e tornando a vida de seus habitantes uma sucessão de eventos sinistros. A história transcorre nos anos do procuração britânico e enlaça o microcosmo da família Abbud ao contexto sociopolítico da era.
Nascida em Belém em 1893, Abbud foi introduzida na magia fotográfica através dos fotógrafos que visitavam a igreja protestante onde seu pai, Said Abbud, era reverendo. Era fluente em arábico, germânico e inglês, estudou literatura arábico na Universidade Americana de Beirute, e ao longo da vida conheceu fotógrafos importantes que ainda hoje são desconhecidos entre nós.
O livro revela uma sociedade cosmopolita e dinâmica, onde alemães, libaneses, turcos e armênios estavam em contato. Com o término do Poderio Turco, Karim, o querido irmão da protagonista, é tomado por soldados ingleses por trazer no bolso um volume de “Os Sofrimentos do Jovem Werther” em germânico. Acaba sendo recluso e torturado porquê espião.
Segmento da narrativa acompanha o desenvolvimento da tuberculose que Karim contrai quando prisioneiro e que depois se espalha pela família. Assim, a história da moça que queria fotografar a noite torna-se a história do registro fotográfico da formosura de um mundo aniquilado —primeiro pela ocupação inglesa e, em seguida, pela colonização sionista, que Abbud testemunhou até 1940, quando também foi levada pela tuberculose.
Os estudiosos da história da retrato a reconhecem porquê a primeira fotógrafa mulher do mundo arábico e da Palestina, para onde sua família migrou em meados do século 19, vindo do sul do Líbano. Abbud foi a primeira mulher arábico a se profissionalizar nesse ofício, tendo acessível seu próprio estúdio ainda nos anos 1920.
Mas o livro mostra porquê seu pioneirismo e formalidade iam além do campo artístico —ela aprendeu a guiar e teve seu próprio coche numa era em que isso era considerado uma façanha. Ser mulher permitiu-lhe realizar fotografias de texto mais sensível, tendo conseguido entrada ao interno de casas e a outras mulheres que não se deixariam fotografar por nenhum varão.
Apesar do título, o livro não narra a história de Abbud dando exclusividade ao olho. Pelo contrário, mostra que as operações visuais são mais complexas do que o trajo fisiológico de sermos capazes de enxergar. Nessa liga de romance de formação e reflexão poética sobre o ato fotográfico, outros sentidos são também convocados.
Há o som real demais dos gritos do irmão tuberculoso, o silêncio do violão da mana Lídia, há vozes atormentando a mãe em pesadelos e há o som dos pensamentos, que às vezes escapam da mente dos personagens porquê palavras que flutuam entre a imaginação e o efetivamente dito.
Na costura de fatos, ficção e reflexão, temos um livro que pode ser lido de diferentes formas, mas em todas elas ficará evidente o poder que a escrita literária tem de tocar o coração da história. Mostra que a retrato existe não unicamente na encruzilhada entre magia e técnica, mas entre a proximidade e a intervalo, entre a formosura única de cada rosto humano e o documento histórico de todo um povo em extinção.