O teatro não estava nos planos do sociólogo Reginaldo Prandi, 79, um bem-sucedido redactor e acadêmico renomado. No entanto, o professor emérito da Universidade de São Paulo não resistiu a uma provocação do ator Rico Súcia e, a partir de uma cena curta de dois irmãos conversando em uma cozinha, escreveu “Os Pecados da Salvação”, que estreia nesta quarta-feira (26) no teatro Lar Coletivo Geral, na Bela Vista, região mediano de São Paulo.
Responsável do best-seller “Mitologia dos Orixás”, Prandi é profissional em sociologia da religião e, para ortografar a peça, releu o “Inferno”, de Dante Alighieri, e o Código de Recta Canônico —o conjunto de leis que estruturam a Igreja Católica. Criou a história de irmãos que, ao procurarem a mãe desaparecida, se deparam com situações que os levam a cometer atos impróprios e até criminosos.
O drama, em um ato e dez cenas, estrelado por Súcia e Zaqueu Machado, é inspirado nos pecados bíblicos e também nos pecados diários dos homens comuns. “A escrita do Prandi me fascina. Estamos entregando um espetáculo que dialoga muito com sua obra”, diz Súcia.
“Em cada proeza, eles vivem um perversão dissemelhante. Até que eles chegam na capital”, afirma Prandi, que também fez secção do grupo que fundou o Datafolha, instituto independente de pesquisa de opinião do Grupo Folha. Tudo o que os irmãos fazem é em nome da mãe, que precisam encontrar. A transformação dos dois jovens inocentes em homens cruéis ocorre no trajectória do mundo rústico à cidade grande, da pequena morada da família ao caos urbano.
Não é a primeira vez que as memórias interioranas aparecem na obra do responsável, nascido em Potirendaba, em São Paulo. No romance “Motivos e Razões para Matar e Morrer”, de 2022, ele retrata, numa pequena cidade, o Brasil que entra na modernidade, na dezena de 1950, para, logo em seguida, encarar as duas décadas da ditadura militar.
A construção de Brasília, o disco “Chega de Saudade”, de João Gilberto, que inaugura a bossa novidade, e o avião Caravelle, da Varig, são símbolos do horizonte que chega e assusta. Para ortografar o livro, Prandi mergulhou no pilha da Folha, ouviu músicas e assistiu a filmes da estação.
Ortografar uma peça é novidade, mas o teatro não é novo na vida do sociólogo. Quando era um jovem universitário, na dezena de 1970, fez um curso com a dramaturga e guerrilheira Heleny Guariba.
Guariba foi presa e sumiu das aulas, sem que os estudantes tivessem certeza sobre o motivo. Prandi chegou a encontrá-la no presídio Tiradentes, em São Paulo, um dos lugares para onde ela foi levada em seguida ser mira da Operação Bandeirante.
Ele entrou no presídio para conversar sobre uma pesquisa em curso com uma estudante detida e conseguiu falar com a professora. Quando saísse, disse Guariba, o grupo continuaria a formação, que havia estacionado no estudo de Bertolt Brecht. A professora nunca voltou.
“Minha experiência de teatro era de testemunha e também de um dia ter feito um curso que nunca terminou”, afirma ele, que já planeja uma segunda peça, sobre o interrogatório de um prisioneiro, que reage a perguntas feitas em off, conforme as emoções de orixás serão refletidas em transes do personagem.
Os 80 anos de Prandi serão comemorados com um evento organizado pela Companhia das Letras em parceria com o Sesc, previsto para 2026. O sociólogo, no entanto, já vive um momento de agenda enxurro que coincide com a chegada às oito décadas de vida.
Além da estreia de sua primeira peça, ele acaba de lançar o livro “Brasil Africano: Orixás, Sacerdotes, Seguidores”, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Os eventos ocorreram em parceria com o redactor italiano Bruno Barba, que lançou o livro “Meu Caso de Paixão com o Brasil”.
“Brasil Africano”, da editora Pallas, é uma coletânea de artigos escritos e publicados nos últimos 50 anos, montando um quadro das mudanças sociais e religiosas a partir de pesquisa centrada no candomblé, na umbanda e em outras manifestações religiosas de origem africana e indígena.
As pesquisas começaram quando Prandi trabalhava no Cebrap, o Núcleo Brasiliano de Estudo e Planejamento, com o professor Cândido Procópio Ferreira de Camargo, nome fundamental na superfície da sociologia da religião no Brasil.
“Sempre perguntávamos: o que é essa religião? O que uma religião pode fazer para ajudar, atrapalhar ou interferir no desenvolvimento econômico, política, social e cultural do Brasil?” O resultado desses e de outros questionamentos é uma vasta e premiada obra, que inclui sociologia, mitologia, literatura infanto-juvenil, ficção e, agora, a dramaturgia.