Reginaldo Prandi Fala De Morte E Candomblé Para Crianças

Reginaldo Prandi fala de morte e candomblé para crianças – 01/11/2024 – Era Outra Vez

Celebridades Cultura

“Bruno estava diante da pior combinação do mundo: Ouorim-Ejiobê significava a Morte está com você, Morte imediata. Ele ia morrer, seu direcção se encerrara.”

É a partir daí que o livro “A Morte e o Menino sem Direcção” desabrocha. Bruno, o garoto protagonista, é um pré-adolescente que mora num terreiro de candomblé. Curioso para saber o que vai ocorrer na sua vida, ele surrupia os búzios da mãe de santo e faz um jogo escondido, quando lê nas conchas que vai morrer em breve, talvez naquele dia mesmo.

“Fazia tempo que eu tinha a teoria de grafar sobre uma menino que rouba o jogo de búzios e acaba aprontando”, diz o sociólogo Reginaldo Prandi, professor da Universidade de São Paulo e responsável do livro que acaba de ser lançado pela Escarlate, selo infantojuvenil da Companhia das Letras.

Mas, falando assim, Prandi comenta somente a superfície da narrativa. É verdade que a história se lambuza na tradição dos personagens travessos da literatura infantojuvenil. Mas o responsável vai ou por outra —e cutuca na obra dois tabus que rondam a escrita para crianças e jovens: a morte e as religiões de matriz africana, continuamente perseguidas num Brasil cada vez mais evangélico e refém da intolerância religiosa.

“A menino não deve perder o contato com a morte”, afirma o noticiarista. “Essa coisa de não falar sobre o término da vida ou de não levar as crianças ao velório, por exemplo, é potente na classe média das cidades grandes, na pequena mediocracia urbana e metropolitana. Nas periferias e no interno não costuma ser assim.”

Não à toa, esse é o cenário de “A Morte e o Menino sem Direcção”. As descrições apontam a todo momento para uma geografia afastada dos centros, com bicicletas cortando as ruas, campinhos tomados pelo futebol e, é simples, o terreiro de candomblé, onde a avó do protagonista é a ialorixá, a mãe de santo.

Se o conflito entre o menino e a morte surge dentro da religião, é também nesse universo que ele se resolve. A trama se desenrola dentro das fronteiras do terreiro durante unicamente um dia, quando todos estão se preparando para uma celebração. Enquanto os adultos se dividem entre os negócios, Bruno e seus amigos ouvem dos mais velhos diversas histórias sobre Icu, a entidade iorubá que representa a morte.

Surgem logo narrativas sobre a luta entre Icu e Exu, a perseguição da morte ao Ifá, o dia em que os gêmeos Ibejis fizeram Icu dançar até não conseguir mais e toda uma coleção de contos ancestrais. “A teoria era passar as tradições preservadas nos terreiros, mas a partir da ficção, de um jeito mais sutil.”

Essa, porém, não é a primeira vez que o responsável escreve para crianças sobre esses temas. Espargido dos adultos pelo clássico “Mitologia dos Orixás”, Prandi é também responsável de diversos infantojuvenis, entre eles “Xangô, o Trovão”, “Os Príncipes do Direcção” e “Aimó”. Mas há uma diferença agora.

Ao contrário de boa secção dos títulos anteriores, nos quais os orixás são protagonistas de narrativas fantásticas e mitológicas, “A Morte e o Menino sem Direcção” joga seus holofotes para o candomblé de hoje, com personagens atuais, num terreiro contemporâneo, onde a religião convive com a panificação e com a escola, no qual os filhos de santo mexem no celular e têm profissões para além dos postos religiosos.

“Às vezes, a convívio é capaz de superar as diferenças religiosas. O pessoal do terreiro não vai ao templo para ver a pregação do pastor. Os evangélicos não vão observar a um orixá dançar. Mas eles podem consumir juntos, por exemplo. Há sempre uma possibilidade de confraria. No livro, não quis transformar o terreiro numa ilhota”, diz Prandi.

Mas num país onde denúncias de intolerância religiosa cresceram 80% no primeiro semestre deste ano em verificação ao mesmo período de 2023, a maior secção delas ligadas ao preconceito contra religiões de matriz africana, essa convívio é realmente verosímil?

“Acho que sim. Ao mesmo tempo, já tive livro queimado em terreiro pública, né? Numa escola, a diretora e uma bibliotecária evangélicas pegaram meus livros, jogaram na rua e botaram lume. Eu me senti o próprio Galileu.”


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Folha

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