“Catorze Dias” é, mais que um livro, um projeto. Porquê informa o subtítulo, trata-se de um romance colaborativo, organizado pela celebrada autora canadense Margaret Atwood ao lado do jornalista americano Douglas Preston e escrito a mais de 70 mãos.
A iniciativa nasceu do objetivo de receptar fundos para a Authors Guild of America, instituição destinada a concordar escritores na pandemia de Covid-19, quando tantos profissionais autônomos se viram sem as atividades que lhes garantiam a sobrevivência.
A empreitada merece ser celebrada, pois a um só tempo labareda atenção para a precarização da profissão —mesmo no mercado de língua inglesa, mais extenso que o de língua portuguesa— e propõe uma maneira de enfrentá-la com suas próprias armas.
Ou por outra, é de traje uma “façanha impressionante”, uma vez que propagandeia a frase do jornal The Guardian estampada na quarta envoltório, já que, apesar de escrito por 36 autores, o texto apresenta uma costura que quase sempre resulta, em sua polifonia, proveniente para o leitor.
A narrativa é conduzida em primeira pessoa por uma jovem mulher que acaba de admitir o trabalho uma vez que zeladora em um prédio decadente de Novidade York. O tempo é de lockdown: na cidade restam exclusivamente aqueles que não conseguiram fugir para o interno e que vivem, entre março e abril de 2020, sob restrições de circulação.
Tendo aprendido o ofício com o pai —um imigrante romeno que agora, agredido pelo Alzheimer, encontra-se internado em um lar para idosos—, a narradora mal consegue desempenhar seu serviço, já que os donos do condomínio estão sumidos.
Seu tempo, porém, será todo ocupado pelos moradores do prédio. Além de realizar pequenos reparos nos apartamentos ao longo dia, ela participa daquilo que vai se estabelecendo uma vez que ritual entre os habitantes do lugar. No termo de tarde, todos sobem para o terraço, participam dos aplausos dirigidos diariamente pelos moradores da cidade aos profissionais de saúde atuando no combate ao vírus e, em seguida, conversam.
Conhecemos todos esses diálogos graças às anotações que a zeladora faz em um caderno deixado por seu predecessor na função. A cada um desses dias corresponde um capítulo, e a cada dia alguns personagens tomam a vocábulo.
Por conta dessa estrutura, o livro vem sendo divulgado uma vez que herdeiro do “Decamerão”, o clássico de Giovanni Boccaccio que reúne novelas contadas por jovens fechados em um fortaleza durante a peste negra.
A confrontação é mencionada pelos próprios personagens, e uma deles o labareda de “um dos clássicos do cânone dos Homens Brancos Mortos”. A obra florentina foi escrita no século 14, vale lembrar, sendo anterior ao surgimento do romance moderno —anterior, portanto, às narrativas dedicadas a destinos individuais, para somar grosseiramente.
Em “Catorze Dias”, são justamente os indivíduos solitários que vêm à tona. Dos encontros no telhado, surge entre esses estranhos a vontade de hospedar e respeitar o outro, mesmo com as animosidades surgidas da aproximação. Um deles chega a declarar que essas reuniões são uma vez que “uma asserção de nossa humanidade diante do horror e da frivolidade de um vírus”.
A narrativa é ligeira e, apesar de suas quase 400 páginas, lida rapidamente. É verosímil notar o domínio da técnica pelos autores —entre eles, John Grisham, Dave Eggers e Etéreo Ng—, que procuram cuidar das situações capazes de, por falta de verossimilhança, despertar suspicácia dos leitores.
Isso vale tanto para um paisagem maior da trama (uma vez que a existência da “bíblia” deixada pelo macróbio zelador) uma vez que para os detalhes —mas é deixado de lado no desfecho tão imotivado quanto surpreendente, do qual convém não dar spoiler.
A consciência de se estar fazendo o muito acaba por lucrar protagonismo na trama, pasteurizando toda a gama de sentimentos que poderiam surgir das situações retratadas —e das quais a boa literatura, livre de moralismos, sempre soube tirar proveito, a exemplo do “Decamerão”.
O romance parece mais próximo da linguagem das séries de streaming: se cada capítulo fosse um incidente, a moldura lhe serviria de brecha e fechamento, e a inserção meramente individual dos personagens permitiria prolongar a trama pelas temporadas que fossem desejadas. O retrato da humanidade edificante proporcionaria ao testemunha a escolha de um passatempo seguro, uma vez que costumam ser as produções no gênero.
São misteriosos os caminhos que tornam a literatura uma asserção contra o horror e a frivolidade. Neste caso fiquemos, logo, com o louvor do projeto.