Sujeição. Um substantivo feminino que designa um estado de subordinação ou submissão, alguém que aceita passivamente a dominação. Em inglês há um outro sentido, um pouco dissemelhante. “Subjection” também diz reverência a estar sob o controle político de outro.
É, sem incerteza alguma, a segunda interpretação da termo que fez com que Saidiya Hartman a escolhesse para o título do seu livro “Cenas da Sujeição”, que chega agora ao Brasil pela editora Fósforo, com tradução de Fernanda Silva e Sousa e Marcelo Ribeiro.
Publicado originalmente em 1997 uma vez que desdobramento de sua pesquisa de doutorado, a obra ganhou uma versão ampliada em comemoração aos seus 25 anos em 2022. “Cenas da Sujeição” foi o primeiro livro de Hartman, uma das mais proeminentes e propositivas intelectuais dos Estados Unidos.
Distinguida com a Bolsa MacArthur, tida uma vez que “prêmio para gênios”, ela é professora de literatura comparada na Universidade Columbia, onde trabalha com estudos afro-americanos. Suas obras célebres “Perder a Mãe” e “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos” já foram publicadas no Brasil.
Nascida numa família de classe média do Brooklyn, Novidade York, Hartman teve uma formação um pouco generalidade: depois de uma breve passagem pelo curso de cinema, estudou filosofia, teoria e história ao mesmo tempo em que foi formada por um cenário político efervescente marcado pelo marxismo, estudos feministas e pós-coloniais, pela obra de Michel Foucault e, sobretudo, por intelectuais negros uma vez que W.E.B. Du Bois, bell hooks e Cornel West.
Expressar que Hartman, uma das percursoras do afropessimismo e criadora do noção de fabulação sátira, é uma mulher e intelectual negra não é mera anedota, mas ponto precípuo que permite entender uma vez que e por que sua escrita desafia os cânones e reinscreve corpos negros na narrativa do mundo, de forma universal, e dos Estados Unidos, de forma específica.
Isso fica principalmente evidente no prefácio do livro, quando ela afirma que sua escrita foi impulsionada por alguém que sabia estar vivendo num mundo criado pela escravidão —sabemos muito quem são as pessoas que tem experiência e consciência para inaugurar um livro com essa asserção.
Portanto é dali, dos porões da escravidão, que Hartman nos convoca a revisitar o pretérito dos Estados Unidos, abandonando toda e qualquer perspectiva de progresso que possamos ter em relação à história do país. É um invitação tão indigesto quanto necessário, já que nos obriga a desconstruir a pedra de toque em torno da qual a história dos Estados Unidos foi fundada: a liberdade.
Enfim, qual foi a liberdade que a população negra passou a usufruir depois da cessação da escravidão e da instauração do sistema segregacionista? A pergunta ainda ecoa num país marcado pelo encarceramento em tamanho e pela violência bestial (e agora documentada em tempo real) a que os cidadãos negros estão sujeitos. É uma pergunta que permite que Hartman fale sobre um pretérito que ainda não acabou.
O subtítulo do livro não é aleatório: “Terror, Escravidão e Geração de Si na América do Século 19” são as dimensões analisadas por Hartman a partir de uma dissemelhante tipologia de documentos que englobam músicas feitas pela população negra, relatos deixados por pessoas que foram escravizadas e uma série de registros produzidos pela classe senhorial estadunidense no século 19.
As violências física, sexual, simbólica e psicológica escorrem por entre as páginas do livro, se mostrando uma vez que segmento constitutiva da vida cotidiana da população negra, seja sob a vigência da escravidão, seja sob a égide da liberdade. Ao narrar essas histórias, Hartman reforça uma vez que a construção da identidade estadunidense criou uma sociedade na qual é impossível dissociar racismo e capitalismo.
Quando assistimos de torrinha a um governo que, de forma antidemocrática, volta a mandar que a experiência branca, masculina e heterossexual deve ser a régua da história dos Estados Unidos, é que a leitura de “Cenas da Sujeição” se torna ainda mais necessária. Ali temos um diagnóstico duro e muito amaricado de uma vez que o horror, a escravidão e o racismo foram e seguem sendo a base da formação estadunidense.