São Poucos Os Artistas Do Tamanho De Dalton Trevisan

São poucos os artistas do tamanho de Dalton Trevisan – 10/12/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Vladimir Nabokov escreveu um narrativa chamado “As Irmãs Vane”, em que empregava um truque que ele mesmo admitia que só poderia ser usado uma vez. O último parágrafo do texto precisa ser lido porquê um acróstico, com as iniciais de cada vocábulo formando uma outra frase, que prova que as irmãs do título, mesmo depois de mortas, continuam afetando a verdade do narrador.

Dalton Trevisan está muito mais vivo que as irmãs Vane. A verdade imediata de Curitiba, e mesmo os fatos que cercaram e ainda cercam sua morte, continuam sendo absolutamente matizados, alterados e determinados por ele. Pela visão que ele tinha e a imagem que criou de Curitiba. Ele não era de se dar a acrósticos e brincos que tais, mas as marcas que deixou na paisagem de cada rua, cada terreiro, cada ponte e cada rio afogado fazem o mundo inteiro virar texto, e continuar provando a existência de seu responsável.

São poucos, muito poucos, os artistas desse tamanho. Os Fellini, Almodóvar, Lynch. Os irmãos de Nelson Rodrigues, Joyce, Salinger e Machado de Assis. Aqueles que são capazes de perceber tão a fundo a verdade que os muro que acabam por nos mostrar o mundo de uma forma incontornável. Novidade e, ao mesmo tempo, permanente. Mais antiga que nós todos. E sempre primeiro de cada um de nós.

É muito difícil conceber a teoria de uma Curitiba que continua existindo sem o olhar de Trevisan. Quando eu nasci, em 1973, ele já estava mais do que consagrado porquê o maior contista do Brasil. Quando meu pai nasceu, em 1948, ele já tinha feito história na literatura brasileira com a revista Joaquim, e estava publicando seus “Sete anos de pastor”, que depois renegaria.

Quando a minha filha nasceu, em 1997, ele estava inaugurando uma período novidade e poderosíssima da sua obra, com uma sucessão de contos brevíssimos, muitas vezes depurados, filtrados de sua produção anterior para virem à tona em livros porquê “Ah, É?” e “234”.

Quando nasceu o primeiro rebento do meu irmão, em 2013, ele acabava de lucrar, pela terceira vez, o Prêmio Portugal Telecom —hoje Oceanos—, depois de uma enfiada de quatro jabutis, uma carrada de outros prêmios, e de zero menos que o Camões.

Ele estava de olho na cidade que conheceu rapaz, uma quase vila de muro de 80 milénio habitantes —mundo de carroças, casas de lambrequins, rios a firmamento acessível; e continuava vigiando a cidade que conheceu já velho, com seus eternamente quase dois milhões de habitantes: mundo de crack, prédios feios, rios canalizados.

Foram quase 80 anos de reparo literária desse estranho fenômeno social, dessa cruel conspiração de cartógrafos que é a cidade de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. E nesse embalo ele ao mesmo tempo diagnosticou seus tipos e suas perversões, retratou seus desejos e recalques e inventou nossa forma de nos entender.

Eu, jovem, li o narrativa em que Nelsinho —o “Vampiro de Curitiba” do livro que leva esse nome—, vai ao banheiro na moradia da antiga professora, que agora parece querer seduzi-lo, e “muito paranaense”, faz xixi evitando qualquer soído. E lembro de ter pensado na maravilha que era alguém prestar atenção num pormenor porquê esse, e lembro de ter me visto século por cento representado.

Foi muito por isso que no momento em que eu soube da morte de Trevisan, eu julguei ter percebido que a cidade tinha completo. De verdade.

Eu tive uma aguda sensação de que era ele quem mantinha viva e harmónico uma cidade que no mundo duro dos fatos é ela própria um trajo duro, cru, muitas vezes mau. Era o fio estável dos livros e dos famosos caderninhos de cordel que ele soltava até ainda agorinha o que garantia que a ilusão-Curitiba valesse a pena e tivesse potencial de explicação. Potencial de se explicar e de explicar alguma coisa desse Brasil bizarro que a gente vive cá no sul.

Mas, para minha imensa sorte, eu estava mergulhado na releitura de todos os seus livros, em ordem cronológica. Estava fazendo a prelecção de moradia para preparar uma novidade crestomatia que organizo com o grande Felipe Hirsch para a editora Todavia.

E por isso estava tomando nota de frases porquê: “Sai-te, gato ulterior, não sejas tão infalivelmente!” “Uma noite, envergando a revestimento sobre o pijama, saiu de óculo escuro, a noite inteira entregue às práticas do ordinário espiritismo”.

De títulos porquê: “Pejada, porém Virgem”, “O Frágil”, “Não sou Bonito, mas Sou Simpático”, “Dinorá, Moça de Prazer”.

De expressões porquê: “um colibri nanico nas asas da luxúria”, “vivinho e lampeiro”, “formicida com guaraná”, “caroço eu te cuspi”, “assim a vida da gente”, “o coisa”, “o terceiro motociclista do mundo da morte”, “o mais reles dos ratos piolhentos do paixão”, “sem honra nem vocábulo”, “nem de minha mãe eu sabor”, “em toda moradia de Curitiba”.

E lembrando da “arara bêbada”, da “broinha de fubá mimoso”, da “corruíra nanica”… da “dália sensitiva de bundinha em botão”.

E foi aí que percebi a minha estupidez. Porque todo vampiro é imortal, porquê anotou aquela minha filha, que hoje cuida das redes sociais do redactor. Porque Dalton Trevisan não desaparece nunca, apesar de ter ele mesmo reconhecido que “os velhos piratas morrem na leito”.

Porque ele passou a vida encarapitado num muro confeitado de cacos de vidro, olhando para dentro da minha moradia e da minha cabeça —eu e os outros sempre quase 2 milhões—, e transformando tudo em Dalton. Tingindo tudo tão Trevisan.

Porque cada “barata leprosa com caspa na sobrecenho” que agora, nessa cidade órfã, quer velejar na notabilidade do vampiro e se fazer de seu companheiro, íntimo, próximo, querido privilegiado (eu?) é personagem da obra trevisaniana tanto quanto a Gorda do Tiki Bar ou o Maníaco do Olho Virente.

Porque cada órgão de prelo (oriente?) que publica há dez e meia uma foto de um velho aleatório de boné pensando se tratar de Dalton Trevisan (e até o lugar indicado na legenda está inexacto, ri do meu lado a minha mulher) está no enredo do maior de todos os contos da literatura brasileira.

Que o piá da casinha solitária da Ubaldino começou a grafar lá nos anos 1940, refinou, poliu, mascou, reviu e cuspiu (“tossicou”) num lenço “de florinha” que agora já pertencia ao velho da casinha solitária da Ubaldino.

Dalton Trevisan não morreu. Graças a ele.

Folha

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