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Tati Bernardi debocha da elite no livro ‘A Boba da Corte’ – 31/03/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

A escritora está nua. Não literalmente —exceto em uma ou outra cena, por exemplo aquela em que mostra a bunda para uma horda de publicitários antes de pedir deposição—, mas nunca houve tamanha oportunidade de enxergar as vísceras de Tati Bernardi porquê neste “A Boba da Galanteio”, seu novo livro.

E considere que estamos falando de uma autora que se especializou em falar sobre ela mesma, sem o menor pudor e com frequência abissal —não só na pilar semanal que assina na Folha há 12 anos, mas em programas de vídeo, podcasts, entrevistas que realiza falando às vezes mais de si que do entrevistado.

“Eu atiro para todo lado”, responde a historiógrafo de 45 anos em sua vivenda na rua Maranhão, na sublime região de Higienópolis, quando o repórter quer saber porquê se faz para permanecer rica sendo escritora. “Cresci com uma mãe dizendo, quer trabalhar com cultura? Não seja uma trouxa deslumbrada.”

Parece uma pergunta indecorosa, mas o livro de Tati é sobre isso. Enriquecer. E toda a angústia que vem quando você chega ao lugar que sempre assumiu aos quatro ventos ser a sua meta —em meio às rodas mais elegantes da tal escol intelectual brasileira— e percebe que ali não tem zero.

Tendo desenvolvido no largo do Maranhão, no Tatuapé, Tati já alcançou a posição a que aspirava há muito tempo. Políticos, editores, cineastas badalados e até o galã Humberto Carrão frequentam seus regabofes. “Mas é impossível concordar que era ‘só isso’. Que as pessoas desse mundo não são zero de mais. Que a vida delas não tem zero de muito interessante”, escreve ela.

“Eu nunca poderia retornar para o lugar de onde vim, tampouco sentia que podia me sentir muito de verdade no lugar aonde cheguei.”

Pode ser estranho ler uma autora famosa pelo escracho usando um tom mais grave. É que demorou, mesmo, para que ela se permitisse encontrar as palavras certas —para que aceitasse que a história que queria grafar era a de seu “não lugar”. Se você sentiu cheiro de Annie Ernaux e Édouard Louis, está no caminho evidente.

“Quando eu comecei a grafar para a Folha, a grande pergunta era: de onde saiu essa fulana? Fui entender que isso significava: a gente não é amiga dela do Santa Cruz, do Vera Cruz, do Bandeirantes, do Gracinha, da USP”, afirma, enumerando colégios e faculdades tradicionais de São Paulo —ela sofria seu bullying de cada dia numa escola privado católica, fora do “vale seduzido” da fauna de esquerda.

Foi caindo a ficha de que um dia precisaria grafar sobre isso. Não uma história de superação da moçoila loira que venceu na vida, teoria que abomina, mas sobre os códigos subterrâneos pelos quais as elites se reconhecem, que perpassam do sotaque até os assuntos do jantar, incluindo uma suposta ensino que, segundo ela, só serve para envernizar comportamentos trogloditas. Veja só um exemplo.

“Com 20 e poucos anos, eu tinha um namorado meio playboyzão, machistão de centro-direita, aquele tipo de faceta que é escancarado no quanto ele quer que você seja uma lady. Ele vira para você e diz, ‘fala mais inferior’. E você larga o faceta em três semanas.”

Depois, frequentando meios de esquerda e conquistando parceiros nesse círculo, passou a escutar as mesmas frases “só que maquiadas” de um “jeito progressista cirandeiro”. “Medita mais, vai mais para a ioga. Quer proferir, não seja essa mulher com tanta raiva, não seja essa mulher com tantos braços quando fala. Não seja uma mulher da zona leste.”

Essa tentativa de proibição se manifestou na sua própria curso de escritora. “Escutei de muito editor, principalmente de editores homens, que eu deveria encetar a grafar ficção. Que essa personagem que sou eu mesma deveria fazer secção de um processo de sazão meu, e eu deveria deixar isso para trás.”

Por isso, “A Boba da Galanteio” foi rascunhado por anos porquê seu primeiro livro em terceira pessoa —seria protagonizado por uma psicanalista bipolar que, em surto, começa a revelar segredos de seus pacientes, uma delas sendo Tati Bernardi. Mas o livro simplesmente não saía.

“Tento grafar qualquer outra coisa e quase durmo em cima do teclados”, anota ela sobre seu processo, no livro agora publicado em primeiríssima pessoa pela editora Fósforo —aliás, comandada por duas mulheres, Rita Mattar e Fernanda Diamant, que convenceram a autora a trespassar de sua antiga vivenda, a Companhia das Letras.

A personagem incorporada por Tati em seus dois projetos literários mais robustos, “Depois a Louca Sou Eu” e “Você Nunca Mais Vai Permanecer Sozinha”, sempre teve um tom boquirroto, ganhando simpatia pela franqueza com que detona a si mesma. Mas eles soam quase anódinos se comparados ao processo de demolição —sobretudo autodemolição— posto em curso em “A Boba da Galanteio”.

“Entendi que eu precisava entrar na bolha desses filhos da puta”, escreve Tati sobre a estratégia que usou para ingressar nos círculos onde está agora, no capítulo intitulado “Os Escritores de Perdizes”.

Começou a “paparicar os miseráveis, enchê-los de comida, mandar para eles, porquê uma donzela em transe, minhas crônicas”. “Me fala o que você acha? Você que é tão foda e o maioral. ‘Eu fiquei abismada com o seu talento no último livro, sabia?’ Eu nem sequer tinha lido a porra dos livros. Não passava da página 15.”

Em outro momento, um filhinho de papai pede juízo à narradora. Pergunta o que falta a ele para ser um bom artista. “Falta malvadeza. Falta ódio, raiva, desespero”, retruca ela. “Falta não ser o queridão, o gente boa, o colega bacaníssimo de todos. Falta chegar em uma sarau de Ano-Novo e gostar de menos pessoas. Falta suportar a dor do não lugar.”

Falar de raiva tem sido fundamental para Tati por motivos que ela mesma ainda não tem “lindamente estruturados” —pediu ajuda até a Édouard Louis na entrevista que fez com o galicismo, seu responsável predilecto, no ano pretérito. Mas é evidente que tem um pouco a ver com o lugar de onde ela veio.

“Eu venho de uma família de pessoas estouradas, muito vivas”, diz. “Essa raiva me conecta a um matriarcado, de mãe, vó, tia, na zona leste. Essa coisa da Mooca, de mulher brigando na feira —um negócio que, para trepar, você tem que silenciar, tem que encolher a globo. Mas, se eu sou escritora, é por motivo delas.”

Folha

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