Em determinado ponto de “Um Pequeno Demônio na América”, o poeta, ensaísta e crítico cultural Hanif Abdurraqib relembra o incidente em que Whitney Houston, na era a mulher negra mais poderosa da indústria músico americana, foi vaiada por sua própria comunidade ao receber o prêmio de melhor álbum de R&B no Soul Train Music Awards.
Clive Davis, portanto produtor da Arista Records, se esforçou para tornar Houston uma artista mais palatável ao público branco americano, apresentando a cantora porquê uma espécie de artista “pós-racial”. A operação foi bem-sucedida comercialmente, mas não sem custos —Houston passou a ser vista porquê traidora de seu povo.
Ao examinar o incidente, Abdurraqib não se limita a criticar o processo de “embranquecimento” da artista, indagando até que ponto a postura da comunidade, que acusava Houston de ter se embranquecido, também não estaria participando do mesmo contexto universal de desumanização.
“O problema é que não há um jeito de se provar preto o bastante para cada tipo de identidade negra nos Estados Unidos, o que dirá no mundo.” Ser preto é estar sempre além, ou aquém.
Um dos pontos fortes do livro reside nessa disposição para encarar questões raciais complexas sem oferecer saídas fáceis —o humor ácido de Dave Chappelle, que, em seu enfrentamento antirracista radical acaba por entreter o público branco; Bert Williams, o comediante de vaudeville que recorreu ao uso de blackface para prometer qualquer trabalho; e diversas outras figuras negras que encontraram maneiras de contornar o racismo ao incorporar conscientemente determinados estereótipos.
“Um Pequeno Demônio na América” é uma coletânea de ensaios de difícil categorização, que transita entre crônica cultural, reflexão sátira e relatos confessionais corajosos. O ritmo sobrepõe de forma vertiginosa uma grande flutuação de temas da cultura pop americana, o que pode incomodar leitores em procura de análises mais detalhadas.
Entretanto, a obra ultrapassa os limites da mera sátira cultural, sendo um verdadeiro quina de exaltação à cultura negra, capaz de transformar pavor e violência em combustível para o libido de viver mais um dia. Mais do que análises, o que se almejam são conexões espirituais —ou, quem sabe, parceiros de dança.
Abdurraqib se dedica ao resgate da memória negra, trazendo à luz personagens quase esquecidos, com o objetivo de ressignificar narrativas estabelecidas e reintroduzir nomes que foram marginalizados no imaginário social.
Buster Douglas, o pugilista praticamente incógnito que derrotou Mike Tyson; Joe Tex, o grande rival do cantor James Brown; Merry Clayton, a responsável pelo backing vocal mais poderoso da história do rock, em “Gimme Shelter”. O livro é permeado por diversas figuras porquê essas, em um notável esforço de recuperação do seu protagonismo.
Por outro lado, os ensaios que enfocam figuras mais conhecidas da cultura negra se concentram em suas fissuras e contradições em vez de recorrer a narrativas épicas e previsíveis de heróis que superaram adversidades com resiliência e lei.
Aretha Franklin retornando às canções de sua puerícia em uma igreja de Los Angeles; Dave Chappelle abandonando um programa de sucesso para se reconectar com a África; Josephine Baker se tornando espiã francesa.
A obra recusa o heróico porque seu objetivo não é apresentar mais uma visão segura e fechada da experiência negra nos Estados Unidos —porquê se dissesse “ser preto é isso”—, mas mostrar os momentos em que essa experiência não encontra lugar. Cada performance rotulada porquê “negra” aponta para um tanto que radicalmente escapa a si mesma, porquê no universo cósmico de Sun Ra.
O texto universal da obra não deixa de transparecer certa melancolia, refletindo uma impossibilidade fundamental para a existência negra dentro do protótipo de sociedade americana, sem horizontes de transformação à vista.
“Venho até vocês com muito pavor de estar perdendo a minha fé na teoria de que o luto possa se tornar alguma coisa além do luto”, escreve o responsável. É um estado de luto permanente, refletida na profusão de perdedores e injustiçados que, mesmo imbatíveis, continuam a amontoar derrotas.
Essa melancolia, no entanto, não se traduz em insuficiência, pois o livro se concentra nas estratégias que negros e negras inventam para seguir respirando, ainda que sem vencer o jogo.
Seu interesse está nos lampejos, nos respiros, nos murmúrios. Daí a força da dança, com seus encontros fugidios que produzem, ao menos, movimento. “Quero dançar com alguém que me ame o suficiente para mentir para mim, até que o disco acabe.”