A forma uma vez que a política se infiltrou na comédia da vida cotidiana nos últimos anos é motivo de lamentação para muitos. Inclusive para os cronistas, que narravam detalhes do dia a dia com delicadeza e trova e se viram sugados para o buraco preto da polarização sob o risco de se tornarem irrelevantes.
Essa é uma das discussões do jornalista Xico Sá em seu mais recente livro de crônicas, “Cão Mijando no Caos”, que se propõe a ser um balanço da última dez brasileira sob o ponto de vista do boteco.
“Já teve muito balanço sobre esse período de 2013 para cá. Balanço da liceu, da sociologia etc. Busco agora dar a taxa da boêmia ao matéria”, explica Sá, que escolheu uma panificação muito estilo boteco para dar essa entrevista.
A ressaca antidemocrática guia os 69 textos da obra, pequenos, de duas páginas, “para ler em pé no metrô ou no banheiro”. Crônicas que dão voz a personagens de São Paulo, uma vez que o camelô que há uma dez vendia camisetas do Che Guevara para estudantes e se viu, anos depois, oferecendo bandeiras verde-amarelas para patriotas de muito —”o pior vil”, na visão de Sá.
O sobrenome desse camelô, Bacanaço, remete à obra de João Antônio “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Naquele livro, o responsável passeava por subúrbios paulistanos cortados por linhas férreas ao lado dos esquecidos da história.
Sá caminha por essas mesmas ruas, mas seus personagens estão supra da risca da miséria. Marcou-lhe, por exemplo, o vizinho classe média de Pompeia que, em meio a panelaços e gritos do jornalista em prol de Dilma, urrou ao cearense Xico: “Volta para a Bahia, comunista!”.
“Eu vinha andando tão só, pelas várzeas paulistanas da Barra Fundíbulo, que o grito de ‘comunista’ me seguia pela cidade. (…) Não vou bancar o lampiônico e expor que não tive pânico. Tive sim, em peculiar naquele dia nos periferia da terreiro da Sé”, escreve.
“Havia ido pegar no conserto uma máquina de datilografia no Oliveira Typewriter, na rua do Carmo, centrão de SP. Um sujeito berrou ‘comunista’ e partiu para o ataque. ‘Eita porra’, suspirei. ‘Agora lascou a tabaca de Xôla.’”
Os curiosos devem buscar a desfecho desse atentado nas páginas do livro —sem spoilers por cá. Mas, uma vez que se vê, a escrita de Xico não nega o seu coração cearense, mesmo tendo chegado a São Paulo há tanto tempo, no Dia da Patranha de 1990.
“Bolsonaro pautou sua manada contra mim em pelo menos dois momentos”, conta. Xico era reconhecido nas ruas por sua atuação na TV ocasião desde o programa “Paixão e Sexo”, que estreou na Mundo em 2009.
Depois seguiu para o SporTV e está sempre sendo convidado para mesas-redondas, sobre esportes ou política. Está diariamente no site ICL Notícias e escreve semanalmente no Quotidiano do Nordeste.
Política essa que era seu envolvente quando começou a redigir na Folha nos anos Collor, no primícias da dez de 1990. Além de repórter, foi colunista e manteve um blog. Foi o jornalista para quem o desparecido PC Farias telefonou para avisar que estava em Londres, antes de morrer em circunstâncias até hoje misteriosas. “Mas isso é matéria para meu próximo livro”, diz o boêmio.
Só que boêmio, de verdade, Xico não é mais. “Congraçamento cada vez mais cedo, 6h30, 7h, e já escrevo de manhã com os sabiás. Os mesmos sabiás que não me deixavam dormir quando eu chegava da rua bons tempos”, diverte-se ele.
Voltando ao início do texto, a política sequestrou o lirismo da crônica brasileira? “Sim”, ele responde. “A crônica era aquela leveza no meio dos textos de jornal. Nos últimos tempos, ou batia globo na política ou acabava insensato, sem leitores. Agora, eu acredito que nas próximas eleições presidenciais não vai ter essa guerra campal que vimos nos últimos anos. Muito… Tomara, né?”
O título “Cão Mijando no Caos” é segmento de um verso do poeta Carlos Drummond de Andrade. Esse verso rememorável estava na prova que o responsável fez, na mocidade, para ser concursado do Banco do Brasil próximo a Crato, sua cidade natal.
Ele não passou no revista e o mundo ganhou um jornalista, um “comunista” e um historiógrafo. Mas, uma vez que nunca se esqueceu disso na vida de retinas tão fatigadas, sempre quis usar o verso uma vez que título de um livro. Ei-lo.